Mayhem em São Paulo: uma celebração macabra

Nilo Vieira

Poucos artistas conseguem ter uma relação tão estreita com um gênero musical a ponto de serem capazes sozinhos de representá-lo, não somente no som, em sua integridade. As transformações de Madonna ao longo de sua carreira condensam boa parte da história da indústria pop, os Stones são a mais certeira representação do estereótipo “sexo, drogas & rock ‘n’ roll”. Todavia, é em um nicho bem mais obscuro que podemos observar o quão influente culturalmente uma banda pode ser: trata-se do black metal, cuja força mais representativa são os noruegueses do Mayhem.

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Da esquerda para a direita: Euronymous, Dead e Necrobutcher

De modo geral, pode-se explicar a abrangência do Mayhem através de uma trindade maldita de ex-integrantes. O primeiro deles é o sueco Per Yngve Ohlin, um sujeito tão fúnebre que faria Kurt Cobain e Lana Del Rey parecerem um serelepe casal de propaganda de margarina. Ao assumir o posto de vocalista, adotou o pseudônimo Dead (morto em inglês) e uma maquiagem macabra (o famigerado corpse paint), além de utilizar de métodos que iam de enterrar suas roupas antes de shows até inalar um pássaro morto numa jarra – tudo isso para incorporar sua nova persona. Ao vivo, enquanto entoava suas letras versando sobre a efemeridade da carne e o fascínio pelo oculto (seja no pós-vida ou em acontecimentos cotidianos), se cortava e, às vezes, saía dos shows levado em um caixão. Notadamente perturbado, Ohlin deu um tiro na própria cabeça e faleceu em 1991, com apenas 22 anos; sua morte seria, literalmente, eternizada através de fotografias tiradas por seu parceiro de banda, Øystein “Euronymous” Aarseth.

Este último, aliás, não apenas colaborou na reputação sinistra do estilo  – reza a lenda que Aarseth teria comido pedaços da carne de Dead, e depois enviado pedaços de seu crânio para comparsas que julgava valorosos – como também foi o responsável por moldar a sonoridade típica do gênero. Ainda que bandas como Bathory e Celtic Frost tenham surgido antes do Mayhem, é consenso que as progressões cíclicas com acordes menores como conhecemos hoje surgiram pelas mãos de Euronymous. Figura central da cena norueguesa, era proprietário de um selo e uma loja de discos, a Helvete, onde músicos parceiros costumavam frequentar (tal circuito ficaria conhecido como “Inner Circle”). Dentre eles, estava a figura mais conhecida e polêmica do black metal: Varg Vikernes, que escolheu o nome de Count Grishnackh enquanto baixista do Mayhem.

Vikernes também foi crucial na (anti?) estética sonora proposta por seus conterrâneos ao heavy metal: em protesto às canções comerciais, requisitava os piores equipamentos possíveis para gravar sua música (os vocais para os álbuns de seu projeto Burzum foram registrados em um headset, o amplificador para as guitarras era minúsculo, os timbres das seis cordas eram obtidos apenas com um pedal de fuzz, que praticamente escondia as notas em um mar de chiado) e buscava compor peças épicas, cuja duração passava os cinco minutos sem esforços. Essa postura radical não se resumia aos estúdios, e Varg acabou sendo o grande difusor do black metal como uma ideologia anti cristã, que defendia a retomada da cultura viking na Noruega. Para tal, provoca incêndios em igrejas e incita comparsas de Inner Circle à tomarem postura semelhante – sua principal desavença era Euronymous, tido como líder do bando mas considerado um mero falastrão por Vikernes. Após assumir os incêndios na imprensa e não obter a repercussão desejada, o músico entra em vários conflitos; o mais conhecido deles resulta no esfaqueamento de seu rival em 1993.

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É isso o que as pessoas querem dizer com o termo “mal assombrado”

Depois de tanta controvérsia, o primeiro álbum de estúdio do Mayhem seria lançado no ano seguinte. Intitulado De Mysteriis Dom Sathanas, o disco conta com 46 minutos dispostos em oito faixas e é tido até hoje como um pilar do black metal tradicional, sobrevivendo às “novas hordas” do estilo – em contrapartida ao radicalismo sectário proposto por uns, o gênero foi um dos que mais ganharam ramificações ao longo das décadas – e ao fatídico teste do tempo, como comprova o show realizado ontem (09) na Clash Club, em São Paulo. Sem banda de abertura e com o setlist contendo a lendária estreia na íntegra, o grupo surgiu no palco às 20h06, vestindo robes pretos no melhor estilo Sunn O))).

Dois membros foram as figuras centrais da noite: o baixista Necrobutcher (o único integrante da formação original na banda atualmente) e o vocalista Attila Csihar. O primeiro era notadamente o mais empolgado no palco, se mexia sem parar e se comunicava com o público fiel através de caras e bocas. Já Csihar impressionou por sua alta performance teatral (além do robe, seu figurino incluiu diferentes máscaras, uma cruz invertida no pescoço e um lampião), tanto por gesticulação como em sua versatilidade vocal – não é exagero afirmar que, dadas as devidas proporções, Csihar se comportava como se fosse protagonista de uma ópera para o capeta. Sua atuação prendeu tanto a atenção que, mesmo durante trechos rápidos das músicas (e não são poucos), o público optou por simplesmente observá-lo fervorosamente, ao invés de começar rodas de mosh. A interpretação diferenciada que Attila havia mostrado em estúdio há mais de duas décadas atrás ganhou outro nível de intensidade.

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Regendo a orquestra de Satã: Attila Csihar em um de seus figurinos (Foto: Fernando Pires/The Ultimate Music)

Os outros instrumentistas não ficaram atrás. O baterista Hellhammer (presente na gravação de 1994) entregou uma execução destruidora, com seu instrumento até se sobrepondo ao restante do grupo no começo do show. Já a dupla de guitarristas formada pelo jovem Charles Hedger e o experiente Teloch permaneceu concentrada durante todo o concerto, com pouca movimentação em palco em favor a um desempenho certeiro nos riffs e solos.

Com palco bem montado e iluminação minimalista, o show foi excepcional. Entre as músicas de De Mysteriis Dom Sathanas, trechos narrados foram inseridos a fim de criar um verdadeiro clima de missa negra no local. Antes da clássica “Freezing Moon”, a lendária introdução feita por Dead no álbum Live in Leipzig soou nos amplificadores, para o delírio do público. A plateia, aliás, reforçou a aura de devoção que o black metal criou ao gritar “Mayhem, Mayhem!” em quase toda oportunidade, além de cantar boa parte das letras em coro.

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Amaldiçoados pela eternidade: Mayhem em ação na Clash Club (Foto: Fernando Pires/The Ultimate Music)

Após as oito músicas do clássico maior do Mayhem, alguns já davam pelo fim do espetáculo. Felizmente, não foi o caso, e a banda retornou para um bis com três canções da fase pré-Mysteriis: as pedradas “Deathcrush”, “Chainsaw Gutsfuck” e “Pure Fucking Armaggedon”, que renderam o maior mosh durante os quase noventa minutos de show. A banda então se despediu da Clash Club e do Brasil – embora Necrobutcher ainda tenha brincado com o público e demorado mais para sair.

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Hay que ser tr00, pero sin perder la ternura jamas: Necrobutcher indo pra horda (Foto: Fernando Pires/The Ultimate Music)

Para não dizer que tudo foi flores (no sentido necrokvlt da coisa, por favor), duas decepções. O merchandising oficial da banda, dado como confirmado pela produtora Dark Dimensions, não marcou presença e, embora as camisetas vendidas do lado de fora da casa de shows fossem bacanas, ficou o gosto amargo para os mais aficcionados. Mas o pior – e mais inusitado – só seria descoberto horas após o encerramento do show: um sujeito roubou parte do palco e ganhou um post no Facebook oficial da banda, com direito até a xingamento em bom português.

De todo modo, o dinheiro investido no ingresso valeu muito a pena. Mesmo que às vezes o teor ideológico se sobressaia, é na intensidade da música onde se encontra o real valor do black metal, que sobrevive forte no underground mundial. Se hoje o gênero é considerado maldito, não parece que isso seja problema para o Mayhem – que, dentre trocas de formação e novas guinadas musicais, segue fazendo um trabalho honesto e se divertindo com isso. Não há dúvida: dentre todas as lendas que permeiam o black metal, a banda segue firme como a maior delas.

ouça o disco acima ou o tinhoso puxará seu pé à noite

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