Manchaca Vol. 1: quando a música transcende o som de uma memória

Capa do álbum (Foto: Reprodução)

Henrique Gomes

Desde sua criação, o Boogarins permanece inquieto, nunca estagnado. A banda goiana imprime, em cada movimento que faz, um recorte da essência que compõe os corpos de seus integrantes. Mesmo que comparada com nomes como Tame Impala e Unknown Mortal Orchestra, eles sabem que vão muito além da neo-psicodelia. É uma espécie de música transcendental, algo desconexo e intenso, mas puramente honesto. Isso é visto em seus shows, onde faixas de três minutos viram grandes sessões de dez minutos e toda a energia que ali habita explode na catarse das improvisações, como em Desvio Onírico (2018), EP ao vivo do grupo. Os LP’s passam a ser carcaças completamente diferentes entre si, porém que carregam a mesma mística única das texturas e camadas sonoras da alma dos membros. O que prevalece é a beleza da primeira ideia, nua, crua e imperfeita por  definição, como visto nos ruidosos sucessos Lucifernandis e Foimal.

Manchaca Vol. 1 (A Compilation Of Boogarins Memories Dreams Demos And Outtakes From Austin, Tx) nasce da tentativa de manter todo esse movimento em tempos de quarentena. Se nos shows eles expandem o som em níveis espirituais, nos discos eles se concentram e o manipulam em colagens e rasgos sônicos para dizer exatamente do que se trata o tal do Boogarins. Sendo assim, é óbvio que existam milhares de experimentos durante as gravações. E, como o próprio nome diz, o álbum é a compilação de tudo que se originou do período de maior efervescência criativa da banda, nas gravações do Lá Vem A Morte (2017) e Sombrou Dúvida (2019), e serviu como demo ou ficou guardado no baú.

Levando o nome da avenida em que moravam em Austin, no Texas, enquanto gravavam entre 2016 e 2019, o compilado remete a um espaço confortável, mesmo que caótico. Sem uma linearidade de produção, tema e tom, a própria ambiência caseira e disforme se torna a conexão entre as músicas e o conceito do disco. Como uma tarde de celebração entre quatro amigos sobre o próprio caminho que trilharam, que os levou ao Coachella, Lollapalooza, Primavera Sound, SXSW, Rock In Rio, Grammy Latino, e, principalmente, à eles mesmos.

Formação da banda, da esquerda para a direita: Dinho Almeida (guitarrista e vocalista), Fefel (baixista e vocalista), Benke Ferraz (guitarrista e vocalista) e Ynaiã Benthroldo (baterista) (Foto: Valéria Pacheco)

Nos primeiros dois álbuns, As Plantas Que Curam (2013) e Manual (2015), havia uma busca jovial e solar pelas respostas no jardim de suas casas, um escapismo caleidoscópico dos anos 60, cheio de fuzz e vozes reverberantes. Já nos dois últimos,  Lá Vem A Morte (2017) e Sombrou Dúvida (2019), o amadurecimento os leva ao obscuro da mente, uma colcha de retalhos repleta de questões e à fuga das respostas, com a experimentação dos elementos eletrônicos e colagens sonoras. O Manchaca Vol. 1 retrata uma síntese de tudo: desde as músicas sessentistas guiadas pela guitarra do Dinho, até os experimentos mais tortos e dissonantes em beats e sintetizadores de Fefel.

Inclusive, temos o próprio Fefel, baixista da banda, nos vocais. Os singles Inocência e Tanta Coragem são composições do próprio, sendo a primeira uma encomenda do Benke Ferraz, como um presente. Guiada por dois acordes junto da kalimba sobre uma batida eletrônica intimista, algo como uma mistura entre Portishead e cantiga de ninar, é uma canção viciante e singela, você a sente derreter sobre a sua cabeça. Segundo os integrantes, o refrão “facilmente poderia ser um pagode ou um forró: ‘isso é coisa que se diga?’”.

As letras e composições de Dinho se casam pela cor das palavras somadas à sonoridade. Não necessariamente a fim de lhe dizer algo diretamente, e sim, de criar uma imagem para o ouvinte. Ele que sempre canta sorrindo e de olhos fechados, como se estivesse te manipulando e contando algo que só você não sabe, enquanto sua voz aguda ecoa no fundo da alma. Como na faixa Cães do Ódio, que surgiu no projeto Boogarins na Casa das Janelas Verdes, produzido pela Void, em que o vocalista provoca dizendo “Com toda essa angústia, que que cê faz?/ Se o fundo te puxa, que que cê faz?” sobre a bateria hipnotizante de Ynaiã, que perdura enquanto os graves distorcidos do moog sobrevoam e até confundem com um riff cheio de fuzz, que rasga o som do meio para o fim. Uma melodia eufórica repleta de vazios que dão intensidade à dança entre vocal e percussão.

Além da banda, os músicos possuem outros projetos: Benke produz outros artistas, como Giovani Cidreira e Laure Briard, e Dinho participa da dupla Guaxe com o Bonifrate, ex-Supercordas (Foto: Pedro Margherito)

Tais características de composição do frontman atraem outros artistas, como Ava Rocha e Céu, que gravaram duas das músicas existentes no compilado. Presente no disco Trança (2018) da Ava, a faixa João 3 Filhos tem sua versão feita pelo Boogarins. Focada nos tambores e no violão de nylon, essa é a canção mais MPBzistica do Manchaca Vol. 1. O grupo soa como um noise-olodum, cheio de cortes e ruídos espalhados, até o fim catártico em coral: Vida de beija-flor é voar/ E ter pra dar amor/ Sonhos que vêm e vão/ E me levam pela imensidão”

Outro momento é em Make Sure Your Head Is Above, que, segundo Dinho em entrevista para a Rádio 89, é um áudio de Whatsapp dele tocando a primeira versão da sua música presente no último álbum da Céu, o Apká! (2019), com um microfone, uma drum machine e uma guitarra. Essas canções demonstram a influência da tal brasilidade sobre a banda goiana, junto de Espera Fala de Novo, faixa guiada por uma batida de samba tortuosa com vocais mântricos de Benke e Fefel, e que explode na distorção de teclados sintetizadores ao final. Inclusive, os últimos dez segundos dela soam como se Kanye West tivesse invadido o estúdio e brincado com três notas desse som de moog semi modular.

O estranhamento para quem não é fã da banda acaba sendo inerente ao propósito do Manchaca Vol. 1. Afinal, logo após Aquele Som – faixa de abertura do disco que mais remete ao início do Boogarins, repleta de palmas, pandeiros, vozes e guitarras à la Beatles -, temos Água, versão demo de Sombra ou Dúvida, porém com uma instrumentação muito diferente da conhecida. Apesar do riff e do refrão maravilhosos abrirem o som, uma série de ruídos que soam como uma fita voltando para trás invadem o vácuo e a ilógica sonora toma conta do espaço, para a alegria de uns e afastamento de outros.

Os shows do Boogarins, muitas vezes, são feitos sem setlist de músicas, focando mais na improvisação ao vivo (Foto: Rodrigo Gianesi)

Além de Água, o experimentalismo toma conta de vez na instrumental Are You Crazy, Julian?, em que cada instrumento caminha numa melodia ensolarada, ao mesmo tempo que são interrompidos pelas guitarras rasgadas nos entremeios, até que passam a se desordenar numa queda em espiral. E na maravilhosa ASMR Manchaca, faixa com tom jazzístico em que um órgão toca aleatoriamente, enquanto invadem o som coisas como lambidas no microfone, comunicações extraterrestres, rosnados, vozes em variações de pitchs e reverses, e sonoplastias de poderes do Dragon Ball, coisas absurdas. Em ambas é possível ver que Ynaiã, que já tocou na grande Macaco Bong, transmite a melodia do Boogarins através da bateria como ninguém, com versatilidade para momentos atmosféricos entre pratos a ecoar, e momentos caóticos em que o bumbo soca o ouvinte no âmago.

O ápice está ao final do álbum: Noite Bright, penúltima música das 13 que compõem a viagem. Escutando ela, vi que é uma síntese do Manchaca Vol. 1, que é a síntese da metafísica da banda como um todo. Começa aflita com a distorção pontuda do synth e a repetição de um riff que cutuca o ouvinte por séculos, até que a voz do Dinho te empurra para a canção de fato. Baseada na construção de um som disperso e reverberante até o infinito, o casamento de todos os níveis instrumentais que se sobrepõem dão uma sensibilidade tão doce, que logo é interrompida com uma guitarra que corta a melodia e te joga de novo para uma variação da introdução ardida de antes.

A partir daí, vê-se a letra como um relato em mantra de um mergulho mútuo entre dois corpos. E então, a calmaria toma conta novamente, até que a faixa é de vez destruída em migalhas. O baixo e a voz seguem como o último pilar, enquanto a guitarra e a bateria se destroem entre si: como se a música virasse um grande solo de todos os integrantes, uma supernova sonora que celebra a desordem na velocidade do socar rítmico e no fuzz do berro entre cordas. Está feita a bagunça, ainda bem.

A produção de Benke, na manipulação dos ruídos e no retrato do irretratável através de corpos sonoros, dão a autoria dessa que é uma das bandas mais interessantes da atualidade. O primitivismo das ideias se faz base para o conceito do Boogarins. Em meio à improvisações e na construção desse universo anti-narrativo das composições, a liberdade é celebrada em cada movimento do conjunto, e movimento é algo que não falta aqui.

Como dito no documentário que saiu junto do álbum, o grupo se “lapidou muito mais do que extraiu algo de fora”. É, de fato, a construção do acaso. Os homens de agora comemoram como os garotos de antes, e humildemente convidam os fãs para se juntarem a eles. Com uma origem simples, Manchaca Vol. 1 toma um rumo catártico sob o deleite de quem ouve, servindo como mais uma analogia ao crescimento deste ser que é o Boogarins.

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