Em Love, Death + Robots, o homem é o robô do homem

Cena do primeiro episódio do volume 3 de Love, Death + Robots. Nele vemos três robôs em um balcão de bar abandonado. Da esquerda para a direita, temos um robozinho menor de cabeça quadrada e na cor laranja. Em sua cara um visor forma um emoticon sorrindo. No meio, um robô branco com formas mais humanas. Ele veste um chapéu de marinheiro, seu olho direito é amarelo e o esquerdo azul. Por último, há um robô em um formato que se assemelha a um triângulo na cor cinza. Ele tem uma espécie de câmera que emite uma luz azul
Mais assustador que o futuro é o caminho até ele (Foto: Netflix)

Guilherme Veiga

Pensar na revolta das máquinas é naturalmente evocar elementos da Skynet, passando pelos andróides da saga Alien, a destruição estroboscópica da Família Mitchell e chegando nas ficções de Interstellar e 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Por mais que essas produções de certa forma tratem também da condição humana, comum de toda boa ficção científica, muitas vezes a vilania da história está voltada aos seres formados por compostos eletrônicos. Em Love, Death + Robots, a carcaça metálica e (às vezes não tão) bem polida, reflete uma humanidade vilã, que, por falta de disputa na cadeia alimentar do poder, arranja um jeito de se voltar contra si própria.

Chegando a Netflix a princípio como uma prima animada de Black Mirror, a obra entrou de mansinho e bagunçou a ordem das coisas, a começar pela sua estrutura. Fora da fórmula de 8 a 13 episódios da empresa, o primeiro volume nos entregava 18, e muito antes da Quibi fracassar, a leva de histórias oferecia algo que não passava dos 20 minutos. O formato de antologia para animação também inovou, por mais que isso já existisse, só que menos difundido. Graças a ela, produtos como Star Wars: Visions, The Boys: Diabolical, e What If… puderam sonhar com um futuro.

Porém, logo a ideia se consolidou e virou uma jóia da locadora vermelha, ultrapassando e muito – tanto em aceitação como em qualidade – o espelho preto da Tudum. Criada por Tim Miller (Deadpool) em parceria com David Fincher (Seven, Garota Exemplar) a antologia partiu da premissa de adaptar os quadrinhos da Heavy Metal ao mesmo tempo que funcionava como portfólio para vários estúdios de animação (Miller, por exemplo, tem o seu próprio, o Blur Studios). A ideia deu tão certo que a série foi renovada para a segunda temporada, que apesar de não manter a obra à altura, é satisfatória e também garantiu mais um ano. Por isso, nessa terceira leva de episódios, assim como os três robôs que deram início a essa jornada recheada de amor, mortes e robôs, foi preciso revisitar a obra para entender sua caminhada, acertos e erros.

Cena do curta “Matança em Grupo”, quinto episódio do Volume 3 da série. Nele vemos um urso marrom meio andróide. Na altura dos ombros, há pontos o remendando. Em suas costas, saem garras cobertas de sangue. A parte de baixo de sua mandíbula é feita de metal e também tem sangue e seu olho está vermelho. Sua posição sinaliza que ele está rugindo.
Sangue é o que não falta na terceira temporada de Love, Death + Robots (Foto: Netflix)

Isso já pode ser percebido logo nos primeiros minutos do novo ano de Amor, Morte & Robôs. Os mais desavisados e que tem em mente o conceito de antologia certamente estranham ao ver os três simpáticos robôs de personalidades excêntricas, os responsáveis pelo início de tudo, novamente em tela. Comparadas a primeira temporada, as novas andanças dos robôs não deixam de ser mais do mesmo. Sua versão inicial talvez ainda seja melhor, porém isso mostra que o bom filho, depois de desviar de sua essência no segundo ano, está voltando para casa. 

O trio de robôs se prova uma ótima solução de roteiro, assinado por John Scalzi, pois mesmo com histórias desconexas, é através deles que o tom da temporada é dado. Mesmo que não se leve nem um pouco a sério (o que rende piadas ótimas, principalmente envolvendo os gatos), ver aqueles pedaços de lata extremamente sarcásticos caçoando da nossa espécie e tentando entender o que aconteceu nos coloca com essa mesma dúvida. Fica a cargo do restante dos episódios não de dar as respostas mastigadas, mas sim de soltar pequenas fagulhas que estimulem os questionamentos do espectador.

Outros que retornam para o Volume 3 são os estúdios de animação. Sem deixar de lado seu caráter experimental, a obra usa dos anos anteriores para filtrar quais estúdios melhor desempenharam seu trabalho. Para esse ano, a Blur, empresa que mais assina capítulos, como A Era do Gelo, no primeiro volume, e O Gigante Afogado, do segundo, volta para o excelente Viagem Ruim. Já os espanhóis da Pinkman.TV, depois de entregarem o frenético e ótimo A Testemunha, retornam para criar Jibaro, a maior obra-prima da antologia.

Cena do curta “Viagem Ruim”, segundo episódio do volume 3 da série. Nela vemos um homem, em um bote, de costas para a câmera, olhando para um navio sendo consumido em chamas. Por estar a noite, só é possível ver a silhueta desse homem e do bote.
Pela primeira vez, David Fincher, antes apenas produtor de Love, Death + Robots, assume o papel de diretor na antologia (Foto: Netflix)

Viagem Ruim, aliás, é quando Fincher arregaça as mangas e sai da cadeira de produtor para dirigir o conto, e é aqui que fica muito claro a diferença que os anos ímpares têm para o segundo. A série provou que sabe entregar Animação de encher os olhos, logo no primeiro segundo de cada play. Agora, é em como tratar essas histórias que está a alma de LD+R, e o diretor, como um ótimo contador de narrativas, dá ao conto de Neal Asher um toque próprio para a já difundida mitologia de monstros marinhos, ao mesmo tempo que crava a ganância e ambição humana com discussão central dos episódios.

A terceira leva de capítulos configura uma temporada que prefere atenuar o amor e os robôs para focar na morte. Claro que a tecnologia ainda é muito presente, mas a série se mostra extremamente inteligente ao desmistificar a ideia pseudo-romantizada de que a derrocada humana só se dará através de inovações. Nós somos nossa principal ameaça por natureza, e a série, prolongando a batida afirmação de Einstein, frisa que não importa se tal ameaça será com bombas nucleares ou paus e pedras, enquanto existirmos, ela sempre existirá.

Essa discussão consegue passear de forma extremamente competente pela miscelânea de gêneros e formatos já característicos da obra. Desde a história com toques lovecraftianos de Sepultados na Caverna, passando pelo resultado da fusão entre Exterminador do Futuro e Stuart Little que é Os Ratos de Mason, todas as narrativas, mesmo que com seus antagonistas bem estabelecidos, sabem conduzir o texto para escancarar ao espectador como, mesmo com tais perigos, é preciso redobrar o cuidado com nós mesmos.

Cena do curta O Mesmo Pulso da Máquina. Na imagem vemos um close de uma astronauta branca de olhos azuis e sobrancelhas pretas. No capacete de seu traje é possível ver o reflexo de parte do cenário, além de fragmentos de poeira que estão grudados.
Cada episódio da terceira leva de LD+R apresenta um formato único de animação (Foto: Netflix)

Por mais que a produção tenha dado um passo para trás para replicar elementos que funcionaram ou são difíceis de fugir, a originalidade ainda dita o show. O fato de manter a média de episódios do segundo ano, contando com apenas um conto a mais que o volume anterior e tendo a metade do primeiro, é possível perceber uma curadoria mais cuidadosa por parte dos criadores. Não sendo contínua, a obra tem alguns episódios abaixo que precisam se calcar única e exclusivamente no gosto pessoal de quem assiste, como Matança em Grupo e Enxame. Em um panorama geral, a régua ainda está bem alta.

Entre os pontos altos, é possível citar a jornada psicodélica e minimalista por uma das luas de Júpiter em O Mesmo Pulso da Máquina, as histórias de pescador recontadas por Fincher, em Viagem Ruim, e a curiosa e divertida aventura de 7 minutos ininterruptos de destruição de um planeta Terra, confeccionada em diorama e que entrega um apocalipse zumbi de botar muitas obras do gênero no chinelo, em Noite dos Minimortos

O terceiro ano de Love, Death + Robots carrega 6 Emmys Criativos conquistados nos últimos volumes, o que já a desponta como favorita em suas categorias. Na 74ª edição da premiação, uma das mais importantes da TV estadunidense, a antologia figura nas categorias de Melhor Programa Curto de Animação, pelo episódio O Fazendeiro, em que disputa com as novatas Star Wars: Visions e The Boys Presents: Diabolical, e Melhor Mixagem de Som em Série de Comédia ou Drama (Meia-Hora) e Animação, por Sepultados na Caverna e disputa com nomes como Arcane e Ted Lasso. Além de já ter presenteado a categoria de Realização Individual Excepcional em Animação para o diretor Alberto Mielgo, a mente por trás do já vencedor do Emmy, A Testemunha, após ele ser responsável pela maior obra-prima da antologia, O Fazendeiro.

Cena do curta “Sepultados na Caverna”. Nela, temos centralizado o vilão do segmento, um monstro gigantesco na cor marrom quase similar a um tronco de árvore. Em sua cara, há 6 olhos na cor amarela
Até mesmo uma representação do Cthulhu deu o ar da graça na terceira temporada (Foto: Netflix)

A complexidade e perfeição de Jibaro

Se Love, Death + Robots se destaca quando sabe contar uma história, o último episódio do terceiro ano, Jibaro, que garantiu uma das passagens da série para o Emmy, é uma verdadeira aula no assunto. Antes mesmo do capítulo em questão, Mielgo já provara sua competência ao integrar o departamento de animação de Homem-Aranha no Aranhaverso e, recentemente, pelo Oscar de Melhor Curta de Animação por The Windshield Wiper. A tradução do curioso termo que dá nome ao episódio varia dependendo da localidade, indo desde “selvagem”, em Cuba, até “fazendeiro”, em Porto Rico. A última opção é a mais aceitável, pois a ambientação indica uma floresta porto-riquenha e até mesmo a adaptação do título para o Brasil ficou como Fazendeiro.

Usando de um plot simples, porém extremamente inventivo, o curta, bebendo principalmente do mito grego de Ulisses e as sereias, conta a história de um colonizador espanhol surdo, que, após o encontro com uma criatura mitológica que enlouquece quem escuta seu canto, desperta a paixão dela, justamente por não ser afetado. Ao adaptar esse conceito, a produção consegue exaltar seu maior trunfo: as entrelinhas de seu subtexto.

Cena do conto Jibaro. Nele, vemos um close do cavaleiro que dá nome ao episódio, um homem branco de cabelos pretos. Ele veste uma armadura medieval. Em seu rosto, é possível ver, além de marcas de sujeira, algumas tatuagens, um piercing no nariz e uma jóia no meio de sua testa.
Em Jibaro, há momentos de dúvida se aquilo é animação ou live-action (Foto: Netflix)

Sem nenhuma palavra, o segmento, assim como as sereias, hipnotiza através de sua beleza e traz para a trama discussões que vão desde o genocídio de povos originários pelos espanhóis, na época de colonização, até relacionamentos tóxicos. O próprio idealizador diz que a obra se trata de uma relação entre dois predadores. Mais uma vez, assim como na maioria dos outros episódios, a mensagem está em torno da ambição e ganância humana. Aqui, porém, a série consegue subvertê-la em uma história poeticamente melancólica e, ao mesmo tempo, maravilhosa.

O design artístico de Jibaro precisou de 117 pessoas para suprir a complexidade que as técnicas de animação exigiam. Por conta disso, Mielgo exala um domínio no que está fazendo e dirige o segmento se aproveitando de elementos, como uma câmera mais subjetiva, montagem frenética e mesclada com uma música acelerada. Driblando os empecilhos que o método escolhido pode trazer, a produção consegue montar um gigantesco espetáculo sensorial e entregar o melhor episódio de toda a série.

Cena de um dos episódios da antologia Love, Death + Robots. Na imagem, vemos o close de uma criatura mística, uma espécie de sereia saindo de um lago. Ela está somente com os olhos para fora d’água, fazendo com que sua parte de cima da cabeça reflita na água. Ela usa uma maquiagem carregada, fazendo com que a pele fique branca, quase pálida. Seus olhos tem um contorno forte preto, há uma linha vermelha que divide o rosto pela metade e suas sobrancelhas são azuis. Seu cabelo é preto e em sua cabeça há um conjunto de jóias e moedas pratas e douradas que cobrem grande parte de seu cabelo.
Recentemente, foi encomendado o quarto ano da antologia (Foto: Netflix)

Após uma ótima estreia e um segundo ano que não supriu expectativas, o terceiro volume da coletânea soube analisar sua própria jornada para, mesmo não abandonando sua originalidade e caráter experimental, entender quais são suas fundações. Em função disso, aqui, Love, Death + Robots entrega seu ano mais maduro e regular. Longe disso ser no sentido pejorativo, pois, em uma obra tão grandiosa em qualidade, buscar a estabilidade e fugir dos altos e baixos é uma ótima estratégia. E nesse melhor de três, todos ganhamos.

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