Inventário mostra a dificuldade do ser humano em se aceitar como falho

Cena do filme Inventário exibe a nuca de um homem branco que olha para apartamentos ao pôr do sol, que estão em um fundo desfocado. Ele veste uma jaqueta e tem cabelo grisalho.
Inventário, dirigido por Darko Sinko, faz parte da seção Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: December)

Caio Machado

A produção eslovena Inventário, presente na 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, possui uma premissa simples, mas instigante. E se, em um dia normal, alguém tentasse atirar em você, dentro da sua casa? É isso que acontece com Boris (Radoš Bolčina) em uma noite, enquanto lê um livro em seu escritório. Ele não se machuca, mas leva um grande susto. A partir daí, o homem de meia idade parte em uma jornada de obsessão, examinando todas as suas relações sociais para tentar descobrir quem foi o (ou a) responsável pelos tiros. 

Em seu primeiro longa de ficção, o cineasta Darko Sinko utiliza esse incidente inicial para colocar o protagonista em uma crise existencial agoniante. A busca pela pessoa que deu os tiros corrói Boris de tal forma que seu mundo perde a cor e a luminosidade, como refletido de maneira eficiente na fotografia de Marko Brdar. Enquanto a polícia investiga, o mistério se sustenta nas falas dos outros personagens, como na cena em que a mãe do personagem diz que sua esposa nunca gostou dele, e no que aparece fora de foco dentro do plano, como no momento em que o personagem principal sai da garagem com o carro e vê uma silhueta, bem no fundo do estacionamento.

Cena do filme Inventário exibe dois homens brancos, mostrados da cintura para cima. À direita, vemos um homem de meia idade, com cabelo grisalho e bigode, que veste uma camisa preta e um paletó marrom. Ele olha para o homem da esquerda, que possui cabelo preto com alguns fios grisalhos, veste camisa azul e uma blusa azul-escura. Ele, por sua vez, olha para algo fora da cena.
Andrej (Dejan Spasić), à esquerda, é o policial encarregado pela investigação que tenta descobrir a origem dos tiros [Foto: December]
Com isso, as cenas do longa estão carregadas de uma desconfiança constante, contribuindo para a angústia do protagonista. Enquanto observa a aparência rotineira das vidas de seus familiares e amigos, ele se questiona: por que todos estão agindo normalmente, como sempre se comportaram, depois dele sofrer um atentado inexplicável? Faz parte da natureza humana seguir com a vida, mesmo depois de se deparar com um grande mistério? 

Esse último questionamento é o que move Inventura (nome original, em esloveno) e faz seu personagem em crise realizar um exame de consciência perante todos com quem se relaciona, proporcionando momentos dramáticos, intensos e até surpreendentes, como exemplificado em uma cena em que uma conversa com um amigo de longa data revela uma mágoa há muito guardada. Assim, o trecho mostra como todo ser humano é capaz de ferir profundamente os sentimentos de outro, mesmo alguém tão comum quanto Boris. 

Cena do filme Inventário exibe um homem de meia idade parado em uma sala de espera. Ele segura um rolo de papel no colo. À direita e no fundo, vemos algumas plantas que servem de decoração para o local. Ao fundo, vemos a cidade, embaçada pelo vidro.
Boris estranha a capacidade de todos seguirem normalmente com suas vidas, mesmo depois de um acontecimento que poderia ter terminado em sua morte (Foto: December)

Paralelo a isso, há uma trama de obsessão que se inicia quando o personagem principal descobre que existe, na cidade, um homem com o mesmo nome que ele. Nisso, começa a segui-lo, observando sua rotina de longe. Se parece não encontrar as respostas em sua vida, Boris vê na do outro a possibilidade de esclarecimento. No entanto, após uma discussão com o outro Boris em um restaurante, ele percebe que ali não encontrará o que procura. 

Então, onde está a resposta? Quem foi o responsável pelos dois tiros, afinal? O longa faz um ótimo trabalho de criação de suspense e conduz o espectador a uma resposta, perto do final, que faz o protagonista achar que sua vida pode voltar ao normal. A aparência do filme até muda, ficando mais vivo e iluminado. Porém, na última cena, tudo volta à estaca zero. O que fazer? Alimentar a dúvida corrosiva outra vez ou tentar viver, como os outros fazem todos os dias? Depois de acompanhar o personagem em tantas conversas desagradáveis e descobertas infelizes, a falta de respostas se torna mais palatável. É mais fácil aceitar que a dúvida é a fundação da existência humana. Senão, a vida torna-se insuportável.  

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