Como Você se Atreve a Desejar Algo Tão Terrível: quando uma tatuagem vira um debate sobre o male gaze iraniano

Cena do filme Como você se atreve a desejar algo tão terrível. Na imagem, uma mulher não identificada tem seus olhos capturados pela câmera. Ela olha para o lado com as pálpebras pintadas com lápis de olho preto e uma sobrancelha fina. O retrato está em preto e branco.
O documentário faz parte da seção Perspectiva Internacional da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Mania Akbari)

Nathalia Tetzner

Mania Akbari é uma força da natureza. Não à toa, a cineasta iraniana escolhe os traços das folhas e flores para tatuar em seu corpo ao longo do documentário Como Você se Atreve a Desejar Algo Tão Terrível, selecionado para integrar a seção Perspectiva Internacional da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Conhecida por abordar os direitos das mulheres de seu país de origem em suas produções, Akbari, dessa vez, propõe o que define como “o diálogo do corpo com a sua memória pictórica”. 

O título – atraente, diga-se de passagem – surge de um diálogo do longa-metragem Haji Agha – O Ator de Cinema (1933), em que o protagonista masculino questiona quais seriam os possíveis motivos para uma mulher querer se tornar atriz. De fato, durante 72 minutos divididos entre uma espécie de filme-ensaio da diretora em uma sessão de tatuagem e trechos de produções cinematográficas do período que antecedeu a Revolução Iraniana de 1979, o espectador se depara com a insalubridade do papel feminino nesse período.

Cena do filme Como você se atreve a desejar algo tão terrível. Na imagem, um homem aponta a sua câmera de cinema antiga para o interior do quarto de uma mulher através da janela. Ele veste uma camiseta de mangas longas com seu cabelo de comprimento mediano. O retrato está em preto e branco.
O male gaze no Cinema iraniano é o principal foco do documentário (Foto: Mania Akbari)

Em parceria com Ehsan Khoshbakht, Mania Akbari assina o roteiro que a traz na função de narradora. Atuando através da primeira pessoa, ela age consciente de que a sua voz ecoa a de todas as atrizes que, embora frente às câmeras, foram e ainda são invisibilizadas pela vasta maioria de diretores homens do Cinema iraniano. Nesse quesito, os sentimentos de repulsa e revolta que cenas misóginas do passado causam na audiência atual são responsáveis por enfatizar a relevância de How Dare You Have Such a Rubbish Wish.

Dentre os diversos cenários de desvalorização da mulher iraniana nas grandes telas, Akbari coloca em foco um elemento em comum: o male gaze. Ainda que a montagem feita pela própria cineasta alcance a monotonia cansativa em certos momentos, o retrato da figura feminina por meio de uma visão masculina e heterossexual é explícita pelas confissões perversas das personagens escritas por eles, pelo fato do ‘não’ significar nada nos enredos e pelos plots que deixam as marcas da rivalidade masculina no corpo feminino.

 Cena do filme Como você se atreve a desejar algo tão terrível. Na imagem, a cineasta Mania Akbari, uma mulher iraniana de cabelos curtos, aparece em uma banheira. Ela está mergulhada em um líquido escuro com um polvo em seu colo. O retrato está em preto e branco.
Mania Akbari tem longa tradição na abordagem cinematográfica dos direitos das mulheres iranianas (Foto: Mania Akbari)

Com os homens praticamente também performando o Filmfarsi em seus ambientes domésticos, o documentário, no rol das obras que contemplam a perigosidade de ser atriz, conclui com maestria que tal atividade não se tratava de Cinema, mas sim de uma violação. Afinal, “Para me salvar, você invadiu a solitude do meu quarto com a sua câmera”. Adentrando na questão regional de Teerã ser considerada a capital da liberdade e repressão, por isso, sendo a cidade das mulheres, a rivalidade oriental e ocidental é posta em xeque pela co-produção entre o Irã e o Reino Unido. 

Diante das qualidades de Como Você se Atreve a Desejar Algo Tão Terrível (originalmente: Chetor Jorata Kardi In Arezooie Mozakhraf Ra Bekoni), a sessão de tatuagem paralela de Mania Akbari toma muito da atenção do público. Por vezes, acaba ficando confuso quais relações realmente atravessam o corpo da artista e das atrizes iranianas do século XX, deixando a sensação de um controle da narrativa um tanto quanto narcisístico. No entanto, nada que esvazie o conteúdo imprescindível que justifica sua presença na 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.

Deixe uma resposta