Gabriel Leite Ferreira
Lançado no dia 14 de dezembro de 1987, You’re Living All Over Me é o segundo álbum do Dinosaur Jr., trio de rock alternativo dos Estados Unidos. Não fique paranoico se esse nome não lhe soar familiar: o Dinosaur Jr. é mesmo uma banda obscura. O underground americano da época fervilhava, cenas surgiam em todos os cantos do país, mas a incipiente MTV limitava-se a divulgar o mainstream. O jogo só viraria em 1991, e mesmo que o Dino Jr. nunca tenha conquistado o mesmo status do Nirvana ou do Sonic Youth, seu segundo disco teve papel determinante na chegada do indie rock às massas.
J Mascis, Lou Barlow e Murph se conheceram no ensino médio. Egressos do circuito hardcore local, se juntaram a princípio sob o nome de Dinosaur e estrearam em 1985 com um álbum autointitulado relativamente incomum: nuances punk junto a referências que iam da rusticidade de Neil Young ao peso do Black Sabbath. A recepção foi inexistente, mas a fórmula estava estabelecida. Dois anos depois, eles refinaram o som e criaram uma das obras seminais do rock alternativo – e, sobretudo, o melhor retrato sonoro da adolescência já registrado, na opinião deste que vos escreve.
You’re Living All Over Me diz, ou melhor, berra “adolescência” a plenos pulmões. Mascis, guitarrista e vocalista, é extremamente contido no microfone, mas não há paradoxo: ele compensa com a parede sonora absurda de sua guitarra Fender Jaguar, incrementada pelo baixo distorcido de Barlow. Ademais, seus vocais desajeitados a la Neil Young dialogam diretamente com as letras, ora ultrarromânticas, ora depressivas. Um dos músicos mais tímidos de sempre, Mascis esmiuça perfeitamente sua essência nas nove faixas: um cara esquisito, deprimido e carente. Ele tinha 22 anos na época do álbum, ou seja, encontrava-se no penoso intervalo entre o fim da adolescência e o começo da vida adulta. A angústia é autoexplicativa.
Ouvi You’re Living All Over Me pela primeira vez em 2014, com 16 anos. A identificação foi imediata e em pouco tempo se tornou um dos meus discos preferidos. Três anos se passaram, me formei no ensino médio e cheguei à faculdade, mas o efeito ainda é o mesmo. Dar play em “Little Fury Things”, a primeira faixa, é mergulhar num misto de nostalgia e empatia. Eu entendo perfeitamente J, suas paranoias, crises, inseguranças, sua baixa autoestima. Eu estive nos mesmos lugares, passei pelas mesmas coisas, e encontrar algo que traduz tão visceralmente esses sentimentos é reconfortante e maravilhoso. What is it? / Who is it? / Where is it?, urra Barlow nos primeiros segundos de disco, e ele e eu sabemos a resposta: é a adolescência.
O clima de transição é palpável inclusive na sonoridade do álbum. Há momentos heavy metal (“Sludgefeast”), há momentos hardcore (“Lose”), há até mesmo momentos proto-shoegaze (“Tarpit”) e folk lo-fi (“Poledo”). No entanto, isso passa longe de afetar a coesão do produto final, muito por conta dos riffs ultradistorcidos do guitar hero Mascis conduzirem as músicas. O volume estupidamente alto permite uma analogia curiosa e/ou contraditória: Dinosaur Jr. é rock de arena para indies. Já em 1988 o quarteto Sonic Youth, fãs confessos da banda (aliás, o guitarrista Lee Ranaldo canta em “Little Fury Things”), elevaria as paredes sonoras a um novo patamar com a obra-prima Daydream Nation. Três anos depois, o My Bloody Valentine alcançaria um nível acima, e o mainstream se renderia definitivamente ao underground com Nevermind, a pedra fundamental do rock noventista.
Não por acaso, Kurt Cobain e Mascis compartilham algumas correspondências temáticas em sua poesia. O ponto crucial dos versos de J é a decepção amorosa, acompanhada da autodepreciação e de crises existenciais. A pesada “Sludgefeast” aborda a insegurança e a ansiedade intrínsecas à tentativa de aproximação entre pessoas, aspectos que são maximizados em se tratando de um indivíduo com a autoestima danificada: I’m waiting, please come by / Got the guts now to meet your eye / These guts are killing but I can’t stop now / Gonna connect with you, girl, before I forget how.
Cobain também dissecou sua baixa autoestima em várias composições, tais como “Drain You”, “Negative Creep” e “All Apologies”. No entanto, seu auge como poeta se deu em “Aneurysm”, o lado B do single “Smells Like Teen Spirit”. A ansiedade toma contornos ainda mais profundos, chegando à violência metafórica: Love you so much it makes me sick / Beat me outta me.
O romantismo exacerbado de J por vezes descamba para o surreal, como em “Little Fury Things” (A rabbit falls away from me / I guess I’ll crawl) e “Raisins” (The lights exploded, she stood burning in front of me / She ripped my heart out and gave it to me). Surge aí outra influência explícita: o pós-punk trágico do The Cure. Não por acaso, algumas versões de You’re Living All Over Me tem como bônus um cover de “Just Like Heaven”, clássico dos britânicos. Extremamente dramático, afetado, submisso – e psicodélico. Adolescentes…
Nem sempre J precisa apelar ao metafísico para soar pungente. “The Lung”, a quarta faixa, poderia perfeitamente ser um instrumental sem que seu poder catártico fosse comprometido. Especialmente nessa canção, a guitarra fala tudo o que precisa ser dito – e muito mais. É Mascis se expondo, deixando sua alma vulnerável em busca de aceitação e paz interior. Aí, então, os singelos dois versos fazem sentido: Nowhere to collapse the lung / Breathes a doubt in everyone. Depois, um dos solos mais emocionais e emocionantes já gravados e um final apoteótico. O meu mundo encapsulado em menos de quatro minutos. A minha música favorita.
Já não ouço You’re Living All Over Me com a mesma frequência de três anos atrás. Os gostos se expandiram, bem como o leque de experiências agradáveis e desagradáveis. Mas eu nunca me esqueço de voltar para o disco de capa estranha e nome esquisito, e é sempre uma visita especial. Hoje em dia, as letras bizarramente dramáticas podem até ecoar menos, mas vejo agora que a guitarra de Mascis é muito mais que um instrumento elétrico de seis cordas.
A Jaguar castanha é o símbolo máximo de que você pode ser o filho calado, o aluno tímido, o eterno amigo “virgem”; não importa, você ainda pode ser muito bom em algo. Nem que esse algo consista em despejar páginas e páginas sobre discos que nem deviam ser levados tão a sério ou tocar guitarra no talo. É meu lugar no mundo, do mesmo modo que é o lugar de J. E é por isso que eu sempre serei grato ao segundo álbum do Dinosaur Jr., ainda que ele esteja à esquerda no cânone alternativo – e também por isso. Feliz aniversário.