DAMN: a era de Kendrick Lamar continua

 

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Nilo Vieira

Em uma análise acerca de diferentes carreiras musicais elogiadas por crítica e público, algumas características em comum são encontradas. Reinvenção, consistência, alcance fora de seu nicho de origem, capacidade de extrapolar seu trabalho além do som. Poder de performances ao vivo, o modo como personas públicas se traduzem (ou se fragmentam) na arte, importância social e, claro, qualidade – um aspecto que é tão subjetivo como não é.

Acima, e quiçá dentro, de todos esses pontos, existe uma relação ainda mais complexa do que a de criador e criação: obra e tempo. O artista deve-se atentar à maneira com que seu trabalho se relaciona com o contexto de sua origem, considerar como evoluir de modo coeso em relação ao passado e, em menor grau, entender as expectativas do ouvinte e tentar superá-las – isso tudo levando em conta os fatores do primeiro parágrafo. Nem sempre é uma tarefa imediata, muito menos fácil.

Na atualidade, não há exemplo melhor que o Kendrick Lamar. O rapper reconhece e exalta suas raízes, mas soube, como poucos, convertê-las em produtos que vão além da mera homenagem. Seus versos abordam temáticas contemporâneas de modo ora agressivo e ora irreverente, e as bases de suas canções apresentam novas roupagens a gêneros do passado. Seu currículo é invejável, com uma estreia acima da média, duas obras-primas seguidas com aclamação unânime e ainda um disco de sobras bastante competente, lançado no ano passado. Também é intimidador: como ele, após tão pouco tempo, daria uma sequência justa a esse combo?

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A resposta veio com DAMN., lançado no último dia 14. As expectativas para o álbum, naturalmente dantescas, ficaram mais tensas a cada novo passo. O single chefe, “HUMBLE.”, seguia uma direção totalmente oposta aos parâmetros de To Pimp a Butterfly (2015), bem como o título em letras maiúsculas e o design mais simples da capa deram um susto em muitos. As catorze canções do tracklist têm apenas uma palavra como nome, a duração total é menor que a dos antecessores e, para completar,  as poucas participações destacadas são a de Rihanna, figura carimbada no mainstream, o cantor Zacari, pouco conhecido, e o grupo U2 – sim, aquele onde o Bono Vox é vocalista, há décadas mais comentado por atos filantrópicos do que por grandes discos. Nenhum sinal da grandiosidade que tornou Lamar conhecido à vista.

No entanto, não há motivo para preocupações. É fato que DAMN. pode não soar tão ambicioso quanto To Pimp a Butterfly ou ter a narrativa cinematográfica de good kid, m.A.A.d city (2012), mas nem de longe se trata de um trabalho simplista. A instrumentação agora volta seus olhos para tendências minimalistas em voga na atualidade, como as melodias do pop rap de Drake e o peso do trap – cortesia do produtor patrono do estilo, Mike Will Made It. O britânico James Blake, prodígio da música eletrônica nesta década, assina a produção de “ELEMENT.”. A  base cinzenta de “YAH.” remete a Earl Sweatshirt, enquanto o vocal lembra muito Chance The Rapper. Mas o tradicional também tem espaço: o soul dá as caras em “FEAR.”, “XXX.” traz de volta scratches de DJ e a apresentação de Lamar no festival Coachella teve direito a figurino e um curta-metragem de artes marciais, no melhor estilo Wu-Tang Clan.

Naruto? Que nada, o novo Hokage está logo acima
Naruto? Que nada, o novo Hokage está logo acima

Além da música em si, as escolhas de abordagem também são muito atuais. Como em Blonde (2016), de Frank Ocean, participações que poderiam ser bombásticas são colocadas em segundo plano: o grupo BADBADNOTGOOD e o multi instrumentista Kamasi Washington são creditados em “LUST.”, que não soa nem pŕoxima de jazzista, e a polêmica participação do U2 se dá com Bono cantando apenas três frases em “XXX.”. A sucessão uma obra expansiva com minimalismo nos leva a Kanye West e sua dobradinha, My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010) e Yeezus (2013), ao passo em que a opção de seguir seu trabalho mais longo com um projeto mais curto (e experimentando ares mais recentes) também se deu em Cores & Valores (2014), última mixtape do Racionais MC’s. É o artista chamando a responsabilidade pra si, reforçando seu protagonismo – ressaltado ainda mais pela capa, a primeira a incluir apenas Kendrick Lamar desde seu ep homônimo, em 2009 (onde abandonou o nome artístico K-Dot).

Assim como estes (e, fora do rap, o petardo recente do Mount Eerie), a sonoridade mais esquelética força o ouvinte a centrar sua atenção nas letras, aqui entregues por um rapper com o flow mais afiado do que nunca. Após a breve introdução de “BLOOD.”, Kendrick já mostra todo seu poder de fogo na cortante “DNA.”,  onde aborda o hip hop em lente macroscópica como trata de casos específicos em sua carreira – aqui, rebate a infeliz declaração dada por Geraldo Rivera no canal Fox News (cuja tréplica foi igualmente lamentável).

Este prisma ambivalente prevalece no resto do disco. O autoproclamado “realest nigga at all” é o mesmo sujeito que tem medo de morrer no anonimato, com o amor imensurável por sua família caminhando ao lado do niilismo. No encerramento em “DUCKWORTH.”, dois personagens cotidianos (seu pai e Anthony Tiffith, CEO da gravadora de Kendrick, Top Dawg Entertainment) são inicialmente colocados como antagonistas na narrativa, para no final se tornarem essenciais exatamente pela convergência de suas trajetórias. Após uma leve rebobinada na fita, o fim do álbum deságua no primeiro verso da introdução. A narrativa é amarrada, e a ambiguidade ganha poesia.

Whoever thought the greatest rapper would be from coincidence?
Because if Anthony killed Ducky
Top Dawg could be servin’ life
While I grew up without a father and die in a gunfight

Aplicar o termo contraditório aqui é errôneo, e subestima o talento de Lamar: ele tem plena noção da natureza conflitante de seus versos, e se expõe justamente para negar o altar de profeta social imposto por muitos. To Pimp a Butterfly só teve o poder que teve graças à humildade do rapper também apontar seus defeitos, e já em sua estreia, Section .80 (2011), deu a letra:

I’m not the next pop star
I’m not the next socially aware rapper
I am a human motherfucking being, over dope ass instrumentation,
Kendrick Lamar

Ao revelar essa humanidade, torna-se mais próximo do público e dialoga de maneira mais íntima com o mesmo. A religião, tema recorrente na discografia do rapper, foi colocada como fator chave para DAMN. em uma entrevista antes de seu lançamento, mas o trabalho passa longe da pregação moralista. A ideia de elevação existe, bem como o julgamento – como bem colocado pela The New Yorker, diferente de álbuns aclamados recentes com tom gospel (The Life of Pablo, Coloring Book), a esperança sugerida por Kendrick se dá de maneira realista, por vezes violenta. A luz no fim do túnel existe, mas não há como alcançá-la sem atravessá-lo: em “XXX.”, a melhor canção do play, um amigo lhe pede sabedoria após a morte de seu filho e é incentivado a buscar vingança. A melodia surge na segunda parte da canção, junto de um retrato vívido das estruturas destrutivas da sociedade; a causa maior para o cenário sanguinário.

De modo similar, a contestação política exigida na era Trump se dá pela exaltação das diferenças de povos nos EUA, ao invés de sequências de dardos diretos no topete mais polêmico do planeta. Em entrevista ao DJ Zane Lowe , Lamar explicou: “O que está acontecendo agora é que estamos focando no indivíduo. Vemos diferentes nacionalidades e culturas se unindo, se manifestando e eu acho que é uma pura reflexão deste disco (…)“. Conciliando este tom otimista com a raiva, seu discurso se torna mais rico e abrangente, e atinge com força tanto a quebrada de Compton como o mundo fora dela.

Em relação aos antecessores, é interessante reparar que o contraste entre agressivo e suave ocorre de maneira bem mais bem demarcada em DAMN.: “DNA.” é seguida pela cadência de “YAH.”, o peso de “HUMBLE.” aparece logo após as guitarras cintilantes de “PRIDE.”. Esta configuração das faixas é justificada pelo tom mainstream assumido do disco – “LOVE.” é o ápice do Kendrick radiofônico -, mas pode ser cansativa para os mais familiarizados. Desta forma, a primeira impressão pode não causar o impacto imediato dos antecessores – quem diria, o projeto mais direto é o que demanda mais audições. Não que seja demérito, dado que o LP cresce muito nas revisões.

Há de se ressaltar, porém, que o fato deste álbum soar mais acessível não denota preguiça ou mesmo que o rapper tenha “se vendido” (essa discussão ainda existe?) ou esteja jogando no mesmo cenário dos outros. Em tempos de álbuns playlist intermináveis, enxugar o repertório é uma atitude que denota segurança: o foco deve ser qualidade, e não quantidade – e, ainda que algumas canções aqui sejam menores, nenhuma é dispensável. Grandiosidade sem substância é apenas pompa e, por mais que os nomes das canções sejam pequenos, a carga que carregam são enormes. O caps lock é justificado, e consolidado pela força das letras. Enquanto isso, se retrair confirma a ciência de Kendrick sobre a função social de sua música, na mesma medida em que mostra sua diversidade como artista.

Finalizando, a cartada de ensaiar uma volta às raízes cruas do hip hop se utilizando de sonoridades atuais talvez seja a melhor demonstração da maestria temporal de DAMN. Com mais este trabalho, o músico segue com uma carreira impecável nesta década, onde reina isolado como maior artista por uma única razão. Ele não é o futuro do rap, ou sequer resgatou o passado glorioso do gênero: acima de tudo, Kendrick Lamar é o presente.

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