A Castlevania de Netflix é um brinde de sangue às séries animadas

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Adriano Arrigo

Existe uma linha de desenhos animados que foram esquecidos na virada do século mas que parecem ter sido recuperados em Castlevania, a nova série do Netflix, baseada na série homônima de games iniciada em 1986. Tratam-se de obras televisas vindas principalmente do Japão, como Angel Cop (1989) e Gynocyder (1993). Nesses desenhos, qualquer deslize besta da protagonista é motivo para que seu cérebro possivelmente exploda e espirre em uma parede banhada com seu próprio sangue.

Pareciam ser contraposições estéticas e temáticas de uma época abarrotada de Looney Tunes que, por sinal, velava sua violência através da comédia. Hoje, porém, a indústria migrou toda essa capacidade de inovação – tanto implícita como explicita – em personagens fofos de mundos açucarados e que usam, principalmente, do nonsense para manter sua linha de enredo.

E isso não é uma ofensa. Mas não podemos negar que houve uma padronização estética nessas obras que nos fizeram esquecer, consequentemente, a pluralidade de enredo que as animações possam ter. Castlevania, então, parece contrapor esses enquadramentos através do esquecido gore noventista para contar uma história herege e sanguinolenta, pelo menos nesses quatro episódios iniciais liberados até agora.

A série trouxe um foco muito interessante para a jornada de Trevor, o último filho do clã Belmont, famoso por extirpar a santa maldade da terra de séculos em séculos. Trata-se de Lisa Tepes, a esposa de Drácula, personagem até então bastante secundária na série. Queimada pela Igreja em praça pública por ter ligações com o demônio (leia-se: seu marido), Lisa traz o recorte da Santa Inquisição para a Castlevania, tema esse não explorado nos games.

Lisa Tepes trás o recorte da Inquisição a série e coloca como mote principal personagens femininos secundários.
Lisa Tepes trás o recorte da Inquisição a série e coloca como mote principal uma personagem feminina que quase passa batida nos games

Lisa representa um lado ocultado da humanidade. Ela é bondosa e inteligente e, portanto, é o contraponto da época que visa a extinção do diferente. Embora os games sejam de terror e nos moldes góticos dos meados do século XV, nunca exploraram esse pessimismo vivido numa época regida pela Igreja e pré-esclarecimento. Então, na adaptação em série, esse período escuro da humanidade é revelado e ganha novos contornos colocando na tela a maldade que parece intrínseca ao período, além do instigante profanismo da Igreja Católica.

Tanto é que, as vezes, parece que a Netflix intenta o espectador a torcer pelo diabo ao invés da Igreja. Nesse sentido, temos uma outra abertura para algo não explorado no mundo do games, pois neles não se luta com arcebispos munidos de arco e flecha ou de sacerdotes munidos de cruzes-espadas. Houve uma mudança do que é, de fato, a maldade no mundo. Esta nova Castlevania se mostra muito mais empenhada em estar, mediante seus moldes, alinhada a produções não convencionais.

Belmont deve derrotar primeiramente a Igreja Católica que possui um mal entendimento do que, de fato, é a maldade que se instalou pela Europa.
O enredo seguido pela Netflix coloca padres e arcebispos contra Belmont abrindo um leque de enredo que a série de games não tinha colocada até então

Um giro e tanto para a série que, basicamente, trata-se de derrotar o mal que existe na terra – como, pelo menos, a trilogia clássica de Castlevania propõe. Exatamente em Castlevania III: Dracula’s Curse (1989), a Igreja Católica é citada na figura do papa, aqui até então bondoso e não tão averso a rituais não cristãos. Aliás, a produção da Netflix é extremamente baseada nesse terceiro capítulo da série. Foi quando esta começou a alinhar elementos de RPG – mesmo que já visíveis em Castlevania II – e que, mais tarde, desembocaria no clássico Castlevania: Symphony of the Night (1997), considerado um dos melhores games da série. Isso demonstra o tato dos produtores em alimentar seu produto com o período de ouro da história da série e esquecer – pelo menos nesses quatro capítulos iniciais – histórias paralelas.

Castlevania nes-trilogy Em castlevania I, temos Simon derrotando o Dracula. Em Castlevania II, temos Simon derrotando o Drácula, mas com ilustradores meio ruins. E, enfim, em Castlevania III, temos Simon derrotando o Drácula feat. Final Fantasy.
Em Castlevania I, temos Simon derrotando o Dracula. Em Castlevania II, temos Simon derrotando o Drácula, mas com ilustradores meio ruins. E, enfim, em Castlevania III, temos Simon derrotando o Drácula feat. Final Fantasy

Esses pequenos sub-enredos e momentos esquecidos da história oficial não só ganham força na tela, como são o pretexto para aplicar terror a produção para a televisão. Vemos, então, a alternativa estética noventista que traduz em sangue o iminente perigo de algo maior. Exemplo excelente disso é a supracitada Angel Cops, em que os tiros que explodem as cabeças dos japoneses comunistas são a representação do perigo daquele sistema para a economia do Japão. Em Castlevania, o pivô da violência reside na cólera de Drácula e em sua descrença pela humanidade. Sua ira é tamanha que não podemos reclamar que intestinos e tripas apareçam escorrendo pelos ralos em volta da Igreja, o órgão máximo de corrupção e poder.

Mas a série não se sustenta somente sob sangue de inocentes. Há a inserção de novos personagens, como, por exemplo, os Speakers, clã de monges dispostos a ajudar a população oprimida pela Igreja. É uma tentativa de colocar algum peso filosófico, mas que, às vezes, acaba forçando a barra. Remete, inclusive, aos misticismos da Clamp, grupo de mulheres independentes famosas por tantos animes, mas que aqui vale a comparação de X-1999 (1992) e As Guerreiras Mágicas de Rayearth (1993). Podemos ver sinais da Clamp também na escolha da composição visual da série. Os personagens compridos (positivamente!) parecem almas desencarnadas e demonstram uma certa homenagem aos padrões Clamp, devido o uso das espadas e suas personas esguias.

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Isto não é uma quarta guerreira mágica de Rayearth

Esse misto de estética nos faz lembrar que não é a primeira vez que Castlevaniareboot em seu visual. Marcadamente, já aconteceu pelo menos três vezes nas trilogias feitas para os consoles Game Boy Adavanced, Nintendo DS e recentemente para Xbox 360. Nas versões para os consoles portáteis, o apelo aos animes foram fortíssimos, em especial aqueles feitos pela artista Ayami Kojima. O trabalho de Kojima é permeado de cores desbotadas, detalhamentos em objetos e adereços góticos como velas, flores e armas através de técnicas que combinam giz de cera e tinta acrílica.

A artísta Ayami Kojima padronizou a arte conceitual da série Castlevania e determinou, inclusive, a estética seguida pela Netflix.
A artísta Ayami Kojima padronizou a arte conceitual da série Castlevania e influenciou, inclusive, a estética seguida pela Netflix

Sua identidade visual foi muito bem-vindo a série que, antes de Symphony of the Night, estava muito ligada posteres de filme de ação americano oitentistas. É muito interessante, portanto, observar o trabalho criativo de uma artista mulher a série que, como as quatro fundadoras da Clamp, trazem um olhar muito longe do universo de homens másculos de mini saias tentando implacavelmente derrotar a maldade que há no mundo. Kojima apaziguou esses arquétipos em homens esqueléticos e extremamente pálidos com sexualidade, as vezes, bastante duvidosas para deixar elevar uma aura mística e misteriosas, muito mais condizente com o enredo de vampiros e demônios.

Sua padronização, inclusive, é muito semelhante  a que vemos hoje na nova adaptação, mesmo que a personagem seja o clássico anti-herói grande, robusto e beberrão. Infelizmente, Kojima não está envolvida com a produção visual da série, mas podemos ver traços de seu legados em personagens principais, como Lucard, filho de Drácula com Lisa Tepes. A produção visual da série está a cargo de empresas americanas, como a Powerhouse Animation Studios – mais conhecida por produzir as cinemáticas de Epic Mickey (2010), Mortal Kombat X (2015) e os trailers em animação de League of Legends (2009).

A Netflix, então, cria seu mito gótico baseada em uma fórmula que vem dando certo. Pega aqui e ali boas referências, pasteuriza um pouco, ao mesmo tempo em que engrossa com alguma inovação que sempre saúda as estéticas das décadas de 80 e 90. Está tudo bem para quatro capítulos iniciais, ainda mais levando em consideração seus recortes. O resultado é um braço novo e repaginado a acoplar a uma franquia que não parece ter fim. Já não vindo em formas açucaradas e pingando sangue, está valendo.

 

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