Era melhor quando o Amanhecer não chegava

Cena do filme Amanhecer. Na imagem, em uma paisagem montanhosa com uma gramado baixo e algumas árvores baixas espalhadas, vemos, ao centro, um homem branco, de cabelos lisos na altura do ombro, sem camisa e de calças jeans, sentado em uma cadeira de madeira e virado de costas para a câmera. Ao redor dele, vemos cadeiras de madeira idênticas à qual ele está sentado, caídas espalhadas pela grama.
Amanhecer se dividiu entre as salas de cinema e as exibições online da 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, na qual integrou a seção Perspectiva Internacional (Foto: Kinorama)

Vitória Lopes Gomez

De filmes que denunciam e encaram ataques à humanidade de frente a outros que se aprofundam nas consequências sociais e emocionais, os recorrentes conflitos no Leste Europeu acharam na Arte lugar para serem refletidos e relembrados. Amanhecer, coprodução entre Croácia e Itália dirigida por Dalibor Matanic, torce a abordagem dramática em uma distopia fantasiosa, estreando no Brasil na 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, como parte da seção Perspectiva Internacional. Usando de simbologias, significados ocultos e muito mistério, o longa-metragem exibido no Festival de Karlovy Vary, tradicional do país de origem, imagina possibilidades a partir do passado croata.

Zora, o nome original da produção, se passa em um futuro próximo e em um cenário isolado em meio às montanhas, onde Matija (Kresimir Mikic) vive com sua mulher, Ika (Tihana Lazavic), e os dois filhos do casal. As ameaças constantes do radicalismo e do autoritarismo vigentes na região fazem com que o protagonista, assim como fizeram os seus vizinhos, queira se mudar de lá. Porém, com o relacionamento apático em crise, uma tragédia familiar não solucionada e a mudança de um misterioso homem para o terreno ao lado, os dias tediosos e os planos em andamento de Matija são revirados.

Cena do filme Amanhecer. Em uma imagem em primeiro plano, em que os personagens aparecem dos ombros para cima, vemos, do lado esquerdo, um menino branco, de cabelos loiros curtos, vestindo um casaco azul, em desfoque e de costas para a câmera. Do lado direito, vemos um homem branco, de cabelos pretos lisos e despenteados na altura da orelha, barba comprida e grisalha, aparentando cerca de 40 anos, vestindo uma blusa azul e um casaco preto, encarando o menino e segurando o rosto dele com a mão esquerda.
Sol a Pino, filme anterior do diretor Dalibor Matanic, foi exibido na mostra Un Certain Regard de Cannes, onde venceu o Prêmio do Júri (Foto: Kinorama)

De cara, a quietude e calmaria de Amanhecer são enfatizadas pela fotografia fria e estática de Marco Brdar. Em casa, nas paisagens montanhosas e até no bar local, assistimos ao cotidiano pacato dos protagonistas e o tédio vivido por eles atravessa a tela: é só depois de mais de uma hora de filme que o interesse finalmente desperta. Quando o forasteiro se instala na cidade e o maçante dia a dia de Matija é abalado, o roteiro, também responsabilidade do diretor Dalibor Matanic, parece começar a engatar, e a curiosidade quanto às ameaças é amplificada pela aura misteriosa e de suspense.

O recém-chegado compartilha o nome de Matija, se muda para o terreno vizinho e passa a construir uma casa idêntica à dele. Enquanto isso, a família passa por seus próprios conflitos. As crianças, excepcionalmente interpretadas por Lara Vladovic e Maks Kleoncic, tentam não se deixar abalar pela chatice da vida que levam, Ika sofre com a perda de um dos filhos do casal e Matija aparenta só existir ali, sem demonstrar sentimentos, irritações ou qualquer reação que evoque alguma empatia ou solidariedade no espectador. Passar da primeira uma hora de Amanhecer é um verdadeiro desafio.

Cena do filme Amanhecer. Em um cômodo que aparenta ser a sala de uma casa, com uma janela iluminada ao fundo, vemos, ao centro, uma menina branca, de cabelos castanhos lisos e longos, aparentando cerca de 10 anos, vestindo um casaco preto e usando fones de ouvido azul, pendurados no pescoço. Atrás dela, em desfoque, vemos uma mulher branca, de cabelos castanhos longos, inclinada para frente.
Segundo o diretor Dalibor Matanic, Amanhecer é o segundo filme da Trilogia do Sol, que começou com seu outro longa, Sol a Pino (Foto: Kinorama)

A esperança da melhora no ritmo vem quando Matija (forasteiro, não o protagonista) bate à porta de Matija (esse sim o protagonista) e o informa que tomará seu lugar, como homem, marido e pai das crianças. A partir daí, Amanhecer finalmente começa, mas não vai muito além. Já ficou claro que o substituto do protagonista, como ele se impõe, faz parte da intimação autoritária e que há um subtexto acerca de religiões ou grupos étnicos, que remetem aos conflitos no passado da Croácia. Só que as relações não passam da livre interpretação, já que em nenhum momento o filme traça paralelos minimamente mais claros com a realidade.

Não que a grande ameaça inspirada no real precise ser nomeada – e não é – mas as simbologias ocultas usadas pelo diretor tornam Amanhecer uma metáfora específica demais para se sustentar apenas por si só. Nisso, entra outra Matija na história, dessa vez uma fanática religiosa. Com isso, a distopia não necessariamente se apoiaria no radicalismo que atinge a região – esse que só é identificável porque a sinopse deu a dica -, mas a relação entre os personagens, os mistérios da trama e a tragédia familiar, que aparentemente tem dedo do caçula da família no meio, também não passam de menções e referências misteriosas.

Cena do filme Amanhecer. Sentados lado a lado em um banco e em frente a uma parede de madeira acinzentada, vemos, da cintura para cima, uma menina branca, de cabelos castanhos lisos e longos, aparentando cerca de 10 anos, vestindo uma touca preta, um casaco cinza e com fones de ouvidos azuis pendurados no pescoço, à esquerda, e um homem branco, de cabelos pretos lisos na altura da orelha, barba grisalha, aparentando cerca de 40 anos, vestindo um casaco preto, à direita.
Três Matijas são Matijas demais (Foto: Kinorama)

A reviravolta que o longa encara em seu encerramento é talvez a única parte em que uma mensagem possa ser tirada. Na confusão de cores e danças da sequência final, quando a luz do dia finalmente chega, fica claro o caráter completamente metafórico do filme, que pode querer indicar o conflito entre gerações e ideologias, tão perto, mas tão isolados naquele mesmo território. Apesar de culminar em um fechamento sem precedentes, Amanhecer termina como começou: uma grande alegoria, livre para interpretação, aberta demais para conceder qualquer resposta. Diferentemente da vida real, se é que a relação é tão próxima assim, era melhor quando o amanhecer não chegava. 

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