A Sobrevivência da Bondade mostra que nem ela está viva

Cena do filme A Sobrevivência da Bondade. Na cena, que se passa durante o dia, podemos ver, ao fundo, uma estrutura de tijolos, que aparenta ser uma casa abandonada. Em um primeiro plano, ao centro, vemos uma mulher preta, de aparentemente 50 anos, com cabelos curtos e castanhos claros, vestindo uma camisa xadrez bege com listras pretas. Ela encara algo a direita da imagem, que não podemos ver.
Presente no Festival de Cannes, Veneza e Berlim, A Sobrevivência da Bondade também integrou a programação da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (Foto: Fandango Sales)

Vitória Gomez

Reencontrar sentido em seus recomeços. É o que a sinopse de A Sobrevivência da Bondade propõe. Na trama, exibida na seção Perspectiva Internacional da 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e vencedora do Prêmio da Crítica do Festival de Berlim, uma mulher negra é abandonada no deserto dentro de uma jaula. Conseguindo milagrosamente escapar depois de dias, ela cruza a paisagem árida em busca de salvação, para encontrar ainda mais barbárie na civilização. 

A sinopse busca por recomeços, mas, a cada novo cenário apresentado, essa ideia parece mais distante. BlackWoman – como a protagonista é chamada nos créditos finais, uma vez que o longa-metragem praticamente não tem diálogos – cruza campos arenosos sem sinal de vida, cidades abandonadas por uma suposta guerra e trilhas em ambientes hostis, com o inimigo caminhando poucos metros à frente. A mulher não tem outro objetivo senão a sobrevivência e, para o espectador, o tom é contemplativo. O que estaria acontecendo ali? E, acima de tudo, o que isso significa?

Cena do filme A Sobrevivência da Bondade. A cena é a paisagem de um deserto, em um plano aberto. Ao longe, à esquerda, vemos uma pequena gaiola com duas rodas. Ao lado direito, vemos, ao longe, uma mulher andando na direção oposta.
O diretor Rolf de Heer não é novato na Mostra de São Paulo: os longas-metragens Bad Boy Bubby (1993) e Dez Canoas (2006) também chegaram ao Brasil pelo evento (Foto: Fandango Sales)

A Sobrevivência da Bondade dispensa a bondade em questão. Desde o início, no entanto, o diretor Rolf de Heer (que já teve passagens vitoriosas pelo Festival de Veneza e Cannes) explicita uma aura fabulesca e fantasiosa que acompanhará os eventos dali em diante. Abrindo o trabalho com uma cena em que corpos mortos por pessoas mascaradas se revela, na verdade, a decoração de um bolo em algum tipo de comemoração, o desenrolar já anuncia que não será explicativo, mas interpretativo.

A proximidade do real, inclusive, fica a cargo de quem assiste. Enquanto vagueia pela diversa paisagem australiana, fotografada belamente por Maxx Corkindale para enfatizar a solidão e a hostilidade do cenário, BlackWoman se depara com tragédias e sofrimento humano, sem escolha a não ser seguir em frente. Se o retratado ali é uma alegoria para a realidade, a sobrevivência se mostra mais importante.

Ao finalmente se deparar com uma cidade, a personagem troca as ameaças da natureza pela ameaça do homem. Em uma situação em que ela tem de pintar o rosto com tinta para se passar por uma pessoa branca por debaixo da máscara de gás e poder andar pelas ruas sem ser capturada, o refúgio se mostra em duas crianças igualmente excluídas da parcela social considerada aceitável ali. O objetivo deles, novamente, recai em se manter vivos, uma vez que mudar a realidade parece impossível.

Cena do filme A Sobrevivência da Bondade. A cena se passa em um local escuro, iluminado apenas pela luz de uma vela, que está ao centro. Ao lado esquerdo da vela, vemos, em um primeiro plano, a silhueta de um menino de costas, deitado de bruços no chão. Ao centro, vemos, de frente, uma mulher preta, de aparentemente 50 anos, com cabelos curtos e vestindo um sobretudo, de bruços no chão, segurando a vela. À direita, vemos a silhueta de uma menina de costas, de bruços deitada no chão.
Gravado na pandemia, A Sobrevivência da Bondade retrata uma doença contagiosa que determina quem vive e quem morre, podendo ser uma alegoria ampla para a nossa realidade (Foto: Fandango Sales)

Longas-metragens anteriores do holandês naturalizado australiano Rolf de Heer já haviam o consolidado como um diretor autoral e de abordagens experimentais. Em The Survival of Kindness, ele parece propor mais uma reflexão do que uma narrativa fechada e com significados consolidados. Ao passo que BlackWoman caminha e transpassa desafios, ela encontra novos e, cada vez mais, se aproxima de situações sem humanidade e aparentemente sem saída.

Em meio ao racismo, à escravidão moderna e a um vírus contagioso (ao qual somente as pessoas brancas mascaradas têm direito à proteção), de Heer cria situações que podem servir de alegoria à realidade. Sem denotar um recorte temporal ou uma contextualização que ancore o filme no mundo em que vivemos, as violências abordadas ali são paralelas ao que lemos no noticiário. 

Um exemplo disso é a própria BlackWoman. Interpretada pela estreante Mwajemi Hussein, atriz congolesa que escapou de seu país em meio a um conflito civil e passou por um campo de refugiados na Tanzânia até conseguir abrigo na Austrália, a personagem enfrenta as provações em seu caminho como quem não tem escolha a não ser perseverar. A produção não traduz seus poucos diálogos – presentes nos raros momentos em que ela não está sozinha -, mas palavras não são necessárias para mostrar a determinação e a resiliência da caminhada, cheias de emoção a cada gesto ou passo dado.

Cena do filme A Sobrevivência da Bondade.  A cena se passa durante o dia em uma paisagem verde, com vegetação rasteira e rochas no chão. Em um primeiro plano, à esquerda, vemos uma mulher negra do busto para cima. Ela veste um chapéu de caubói marrom, um pano preto sobre a boca e o nariz e um sobretudo cinza, e segura a corda amarrada em uma menina. A menina está ao lado direito. Ela é uma jovem indiana, aparentando cerca de 15 anos, com cabelos castanhos longos e lisos, vestindo uma camiseta bege rasgada e coberta com uma manta azul. Ela tem ferimentos vermelhos em todo o rosto e está sendo amarrada pela mulher à esquerda.
Além de Hussein, os jovens irmãos Deepthi e Darsan Sharma integram o elenco (Foto: Fandango Sales)

Ao final, porém, a mensagem se amplifica – ou cai por terra. Sem mudar a mesma realidade que a colocou em uma jaula para morrer no deserto, BlackWoman retorna para o local de onde veio, abandonando os resquícios de luta que passaram pelo seu caminho. Talvez a batalha seja continuar viva ou, ainda, apenas ceder. Talvez a fábula seja conformista, apenas um mero retrato de uma realidade em que não há como vencer.

As possibilidades da trajetória se revelaram piores do que a morte. Não há sentido em lutar se não houver como vencer? A Sobrevivência da Bondade recusa o que seu próprio título propõe e escancara um mundo de violências – e, se houver um significado por trás de todas elas, cabe ao espectador decidir. Ainda que o ritmo não seja arrastado, a sensação final é que uma hora e meia se estendem, em golpes duros de absorver. Porque, se a bondade existe, ela não sobreviveu.

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