Pedro Gabriel
Miami, 1964. Após uma vitória espetacular de Cassius Clay (Eli Goree) sobre o campeão dos pesos-pesados Sonny Liston, um grupo de amigos se junta para comemorar o feito. Essa noite poderia ser apenas mais uma história de diversão, com uma festa regada a bebidas alcoólicas. Mas isso não ocorre. O grupo citado é formado pelo ativista Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), o pai do soul Sam Cooke (Leslie Odom, Jr.), o jogador de futebol americano Jim Brown (Aldis Hodge) e o campeão Cassius Clay, que futuramente seria chamado de Muhammad Ali.
Uma Noite em Miami… desenrola os conflitos entre o quarteto ao discutir suas participações no movimento negro. Enquanto Malcolm X lutava de forma aberta, outras personalidades como Sam Cooke utilizavam de diferentes artifícios, travando uma luta mais silenciosa. Logo no início do filme, há a apresentação dos personagens em situações delicadas, em que sofrem com o racismo nos Estados Unidos. A primeira cena, que traz Jim Brown indo visitar um senhor branco muito rico, dói na alma de assistir, uma vez que ele é muito bem recebido logo de cara, mas, quando oferece uma ajuda, é prontamente impedido de entrar na casa por conta de seu tom de pele.
O filme é uma adaptação da peça homônima escrita por Kemp Powers, que também assina o roteiro do longa. A estrutura da história acaba seguindo os mesmos caminhos de outras produções teatrais, como a também indicada ao Oscar 2021, A Voz Suprema do Blues, e The Boys in the Band. Todos esses filmes trazem uma construção de espaço muito parecida, mesmo que as histórias sejam completamente diferentes. Os cenários são concentrados em apenas um local, o número de personagens é pequeno e os diálogos são extensos e pesados. Cada vez que alguém começa a falar, as palavras são direcionadas para afetar o interlocutor de uma maneira extremamente forte.
Toda a estrutura do filme pode não agradar uma grande parcela do público, uma vez que são histórias mais contidas e pontuais, e que, em sua maioria, terminam com finais abertos. No caso de One Night in Miami…, a história é o que promete em seu título — contar o desenrolar dessa noite, cheia de atritos na forma como cada um se relaciona com o ativismo negro e mostrar as fragilidades e diferenças de pensamentos no movimento na época. Nesse ponto, ele consegue seguir um caminho mais fluido que outros filmes baseados em peças. Os diálogos são muito bem construídos, amarrando os desenrolares da história sem parecer que querem colocar dias em apenas uma noite.
A relação dos personagens, como suas diferenças e ligações, são um ótimo fio condutor. Mas, dentre os quatro personagens, Aldis Hodge acaba ficando ofuscado dentre os demais, uma vez que a atuação de Leslie Odom, Jr. é impecável. O ator mostra os nuances de toda a sua frustação na carreira e na forma como ele atua na manutenção do movimento negro. Não apenas Leslie, mas os demais personagens possuem momentos de maior destaque.
Eli Goree entrega uma ingenuidade em seu Cassius Clay, que está prestes a se converter ao islamismo, e tem como guru Malcolm X. Inclusive, Kingsley Ben-Adir entrega uma atuação formidável em demonstrar essa figura paternalista, que está atenta a todo momento, e que vive o que luta. O contraponto do seu personagem com o de Sam Cooke movimenta a maior parte das discussões do filme, com diálogos grandes e profundos, deixando claro as divergências, mas aprofundando suas relações.
Mesmo com todos seus acertos no roteiro e nas atuações, o filme poderia facilmente se perder. Mas não é o caso, uma vez que a já premiada Regina King é a diretora desse longa. Esse é o primeiro trabalho da atriz no backstage de uma produção cinematográfica, e já começou o com o pé direito sendo muito elogiada pela crítica. A direção de King consegue situar quem assiste em poucos minutos na realidade dos personagens, com cenas impactantes.
Além disso, atua com maestria ao emplacar com fluidez os diálogos. As decisões de como festejar, se posicionar, na forma como são vistos pela sociedade, tudo toma uma proporção ideal para a proposta de Uma Noite em Miami…. É conciso e trabalha de forma exemplar a história, que, mesmo sendo fictícia, mantém o peso e importância dessas figuras na sociedade. O que se vê em tela é apenas uma amostra do que viria um ano depois, com o assassinato de Malcolm X.
A produção foi muito bem recebida nas premiações, com grandes indicações em seu repertório. No Oscar 2021, especificamente, está indicado em três categorias: Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Ator Coadjuvante para Leslie Odom, Jr. e Melhor Canção Original com Speak Now. Infelizmente, as chances do filme não são as melhores. Em todas as categorias em que foi indicado, a de Canção Original é a mais forte. Nas demais, terá que bater de frente com o favorito para roteiro, Nomadland, e de ator com Daniel Kaluuya, por Judas e o Messias Negro, que tem vencido todas as premiações, inclusive a do Sindicato dos Atores, o SAG Awards.
Mas, o filme merecia mais prestígio em outras categorias. O trabalho de Regina King merecia um lugar entre os indicados a Melhor Direção. Em outras premiações, a diretora foi mencionada, mas no Oscar acabou sendo esnobada. Mesmo que não levasse o prêmio, pela primeira vez na história, a Academia indicaria três mulheres na categoria. Além disso, em Melhor Filme, onde pode-se ter até dez indicações, duas vagas ficaram sem serem preenchidas, dando espaço tanto para Uma Noite em Miami…, quanto para A Voz Suprema do Blues. Entretanto, é gratificante ver o número de filmes sobre os movimentos negros sendo prestigiados, além de artistas negros indicados e com grande probabilidade de vencerem, após alguns anos não terem nenhum concorrente.
One Night in Miami… está disponível no Prime Video, juntamente com outros indicados como O Som do Silêncio, Borat: Fita de Cinema Seguinte e Time. A história dessas grandes figuras, festejando em um quarto de hotel com um pote de sorvete pode não agradar a todos pelo seu formato, mas é uma narrativa muito bem construída e que marca a entrada triunfal de Regina King na direção de cinema.