Caroline Campos
Pai pastor, mãe advogada e filha prodígio. Essa é a fórmula infalível para produzir uma família bem vista, amigável e exemplar, certo? O autor sueco M.T. Edvardsson parece discordar. Parte da parceria com a Companhia das Letras e publicado sob o selo da Suma, Uma família quase perfeita é um thriller intenso e envolvente sobre a verdadeira face da justiça e as situações extremas que podemos nos colocar para proteger aquilo que nos é mais sagrado. Mas, atenção: o livro possui gatilhos relacionados à violência sexual e psicológica. A narrativa pode causar perturbações em leitores mais sensíveis aos temas.
Através das 376 páginas traduzidas por Natalie Gerhardt, Edvardsson se diverte às custas da curiosidade de seu leitor para tentar responder: quem matou Christopher Olsen? A principal suspeita, já detida e investigada, é Stella Sandell. Aquela Stella, filha do benevolente pastor Adam e da talentosa advogada Ulrika. O choque atravessa os quatro cantos da pequena cidade de Lund, abalada com o fato de que uma garota de 18 anos possa ter matado brutalmente com golpes de faca um empresário de sucesso.
No entanto, passada a tempestade, os sussurros começam – Stella era uma garota problemática, agressiva e incapaz de resistir aos seus impulsos. O tribunal público já havia dado sua sentença, todos conheciam sua reputação, e a família intocável dos Sandell começava a desabar. O primeiro testemunho é dele, O Pai. A história nos é contada sob o ponto de vista de Adam na parte um do livro, e o que se inicia com o relato de um homem cristão passando por dilemas éticos e se lamentando com metáforas bíblicas, se transforma em uma narrativa paranoica acerca de um moralismo falido e hipócrita vindo de um pastor que a todos julgava.
Do fruto de sua boca o homem se beneficia, e o trabalho de suas mãos será recompensado.
Provérbios 12:14
A visão de Adam sobre a própria filha é uma grande disputa por controle. Superprotetor e beirando o abusivo, o pai é nosso primeiro contato com quem, afinal, pode ser Stella. Surpreendemente, percebemos que o pastor não faz a menor ideia da resposta – tudo que ele vê é quem gostaria que ela fosse, ingênua, passiva e vulnerável. A persona de Adam vai caindo aos pedaços conforme ele se arrisca em suas investigações, e podemos ouvir a reverberação da risada do autor sueco, que escolheu justamente um pastor, símbolo da verdade e da bondade, para iniciar sua história conturbada e ser o patriarca de uma família que preza, acima de tudo, pelas aparências. Custe o que custar.
Antes mesmo do tom da primeira narrativa se tornar cansativo, M.T. Edvardsson troca os papéis e passa o microfone para a estrela do show, Stella. Já confinada em uma cela, A Filha é assombrada por ações muito anteriores ao assassinato. Apesar da tentativa de simpatizar nem que seja o mínimo com a jovem, cada pensamento e lembrança que ela retoma nos dá vontade de gritar. Mimada, infantil e arrogante, Stella Sandell sofre do mal do filho-de-pais-classe-alta-que-não-consegue-se-encontrar. Prepare os olhos para as inevitáveis e automáticas reviradas.
Mesmo que a garota não seja culpada pelas inúmeras situações que cria, ela com certeza sabe piorá-las com suas crises de raiva violentas e birras intensas. Os problemas de Stella, no entanto, não são superficialmente abordados. A necessidade de garantir a fachada da família fez com que seus pais a prendessem em uma cúpula emocional, onde a proibição era clara – em casa a gente resolve; não faça um escândalo. Sua rebeldia adolescente e personalidade explosiva foram o empurrão que faltava para a jovem se afogar dentro do próprio aquário e iniciar uma jornada que, se não fosse por Amina, sua melhor amiga, seria gradualmente autodestrutiva.
Que te parece? Não ficaria apagada a mancha dum só crime, insignificante, com milhares de boas ações?
Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo
Quando chega a vez de Ulrika, já estamos levemente aborrecidos. Claro que o objetivo de um suspense é deixar o leitor na expectativa até a conclusão da história, mas as idas e vindas entre passado e presente de Uma família quase perfeita rendem uma série de momentos anticlimáticos e repetições desnecessárias. Assim, o testemunho d’A Mãe é o ponto de vista escolhido para as grandes revelações da trama. O julgamento de Stella rouba a cena e aguça os ânimos, mas é quase engolido pelos devaneios entediantes da advogada, que retoma, capítulo sim capítulo não, os mesmos acontecimentos já abordados por Adam e Stella anteriormente.
No entanto, o mais interessante da narrativa de Edvardsson é sua capacidade de diferenciar seus personagens através da escrita. Os Sandell possuem convicções diferentes, idades distantes e um modus operandi muito próprio de cada personalidade e o autor não só os entende como também os explora decisivamente. As outras duas figuras-chave para solucionar o suspense, Christopher e Amina, são abordados apenas pelos olhos do trio, mas incrementam a carga dramática de uma trama familiar complexa por si só e se encarregam de unir as três pontas soltas da obra sueca.
Apesar da qualidade de Uma família quase perfeita, que cumpre o mistério que propõe, M.T. Edvardsson utiliza demasiadamente da violência sexual contra suas personagens femininas. São três estupros abordados contra três mulheres diferentes, e a sensação de mal estar é impossível de ser ignorada, mesmo que nenhum deles seja detalhado ou descrito. Em pelo menos duas das situações, as jovens recebem traços neuróticos e quase maníacos em suas características pós-violência para reforçar as consequentes marcas psicológicas e o sistema penal, irrefutavelmente falho em acolher essas garotas, da Suécia.
Não existe justiça – nem dentro nem fora dos tribunais.
Clarence Darrow
O final do livro de Edvardsson não é moldado para ser surpreendente, pois o sueco soube se garantir com seus comos e porquês para não precisar depender, de fato, de um quem. Quando as conclusões se desenrolam, até esquecemos de nos questionar a identidade do responsável por empunhar a faca que estripou Christopher Olsen. O epílogo responde a dúvida, para o alívio dos curiosos de plantão, mas toda a atmosfera construída nas últimas páginas dispensa considerações óbvias como a face do assassino.
Se o mérito da leitura cativante pertence aos capítulos curtos ou à construção de uma matilha afiada em pele de cordeirinhos assustados que o sueco proporciona, cabe ao leitor decidir. Mas Uma família quase perfeita é uma obra natural para integrar o catálogo de suspenses da Suma, e, mesmo sem muitas reviravoltas marcantes, o livro consegue jogar de um lado para o outro o principal investigador desse assassinato: você.