Guilherme Veiga
Quanto vale entrar para a História? Quanto vale não ser esquecido jamais? Indo além, na questão cinematográfica, quanto vale fazer parte da História, seja como idealizador ou como mero telespectador? Não faltam exemplos em que essa visão não foi estimulada, como em Blade Runner (1982), The Rocky Horror Picture Show (1975) ou, até mesmo, The Room (2003) – obras injustiçadas ou que deram a volta em sua própria ruindade, mas, a princípio, foram incompreendidas. Essa poderia ser a sina de Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, longa lançado em Março mas que só chegou ao Brasil em Junho. Porém, tivemos a sorte de ver a História sendo (re)escrita no Cinema.
Daniel Scheinert e Daniel Kwan, carinhosamente conhecidos como Os Daniels, já mostraram ser um ponto fora da curva com o excelente Um Cadáver para Sobreviver (2016), mas foi com a obra mais recente – a segunda na filmografia da dupla – que eles consolidaram esse selo na Sétima Arte. Mais uma vez usando do absurdo – vale lembrar que são eles por trás do clipe do excêntrico fenômeno Turn Down for What – para tratar das relações humanas, os diretores fazem de Everything Everywhere All at Once, em qualquer realidade possível, o filme de 2022.
Contando a história de uma imigrante chinesa dona de uma lavanderia que, após ter problemas com a Receita Federal Americana, tem acesso ao multiverso, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é um filme de percepções. Isso já começa com seu elenco de atores principais. Tanto Michelle Yeoh como Ke Huy Quan tinham uma perspectiva estabelecida no imaginário ocidental: ela, por ser uma exímia artista marcial, que teve seu ápice em O Tigre e o Dragão (2000), e ele, sendo uma criança carismática em Os Goonies (1985) e Indiana Jones: No Templo da Perdição (1984). Aqui, além de entregar o papel da vida de ambos, o longa também traz uma tocante e subversiva nova visão sobre esses profissionais.
Longe de ser uma cagação de regra, essa obra é do tipo que precisa ser vista mais de uma vez, justamente pela sua proposta de trabalhar nossa percepção de formas diferentes. Mais do que um filme, Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo é uma experiência. Você pode ir a diversos jogos de futebol ou festivais de música e, ainda assim, cada um ser único. É exatamente essa a sensação que o longa provoca a cada replay.
Fica até difícil definir Everything Everywhere All At Once em um gênero específico, pois, fazendo jus ao ‘tudo’ em seu título, a obra realmente se propõe a ser essa bagunça organizada. Do drama à comédia, do sci-fi às artes marciais, o longa tem sucesso em tudo o que explora. A produção sabe trabalhar em cima de sua miscelânea de estilos, não só os cinematográficos, mas também em suas formas de filmagem, conduzidas por Larkin Spike, na edição de Paul Rodgers e na montagem e composição de Jason Kisvarday, a fim de criar uma identidade única, poucas vezes vista e quase impossível de ser retomada.
Os Daniels são conscientes em utilizar a junção de formatos para discorrer sobre relações familiares. Recentemente, tratar esses tipos de confrontos virou uma tônica da Sétima Arte. Minari: Em Busca da Felicidade (2020) e A Despedida (2019), também trazem o assunto à tona através de perspectivas de famílias asiáticas. Aftersun (2022) atribui uma nova ótica para a relação pai e filha de forma muito singela e que se assemelha ao tema da obra de multiverso. Porém, EEAAO consegue atribuir novas camadas à discussão. Através do absurdo, os diretores usam de um pano de fundo para tratar algo muito difícil de traduzir para as telas: a depressão.
De acordo com a dupla, que também está por trás do roteiro, o texto demorou alguns anos para ganhar forma, e, durante esse tempo, eles viram dois de seus principais cenários começarem a ser trabalhados na indústria: o niilismo e o multiverso. Os dois chegaram a audiência através de Rick and Morty (2013 – atualmente), enquanto o emaranhado de realidades, após ser brilhantemente abordado em Homem- Aranha no Aranhaverso (2018), foi apropriado pelo enlatado e cheio de fórmulas Universo Cinematográfico da Marvel. Porém, sendo esse ponto fora da curva em Hollywood, os idealizadores conseguiram formar seu próprio multiverso nesse universo de multiversos.
Deixando um pouco de lado Nietzsche e suas ideias, a obra usa mais de Albert Camus como base teórica, quando o francês desenvolve um novo tópico ao conceito do alemão, aliado a uma vertente teorizada por Jean Paul-Sartre. O niilismo, em letras gerais, é a afirmação da falta de objetivo no existir. Já o existencialismo de Sartre, vindo de uma raiz niilista, é o questionamento do por quê e pra quê da vida, enquanto o absurdismo se trata do desprendimento do niilismo e existencialismo, através da aceitação da vida como sem um propósito estabelecido. E fica evidente a aproximação à Camus quando os diretores usam de um recurso ironicamente chamado de absurdismo cômico.
Joy, interpretada por Stephanie Hsu, cujo o nome é uma tradução direta para alegria, é uma personificação niilista e, no momento em que suga todas suas versões e vê essa falta de propósito, perde seu nome para se tornar a vilã Jobu Tupaki. A jornada de Evelyn, de Michelle Yeoh, é justamente o existencialismo sartreano na busca por sentido para tudo aquilo através dos multiversos, enquanto a primeira versão gentil e afetuosa do Waymond de Ke Huy Quan funciona como uma espécie de absurdismo encapsulado.
Através disso, a escrita desenvolve um cerne emocional sólido para seus personagens que, apesar de um contexto totalmente pirado, aproxima o ser humano à frente das telas para o que está dentro dela. O próprio Camus dizia que “A Arte não é para mim um prazer solitário. É uma maneira de comover o maior número possível de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e alegrias comuns”. Apesar da obra ter algumas poucas críticas negativas (carinhosamente, de pessoas amarguradas), qualquer pessoa, de alguma forma, se enxerga nela, seja com uma sequência em um universo onde todo ser humano tem dedos de salsicha, seja em um diálogo mudo entre duas pedras conscientes. E que privilégio é isso.
Virou o queridinho do público e da crítica? Virou! Virou o queridinho. Mas não é só do público e da crítica, é porque é bom mesmo. Em todos seus aspectos técnicos, a obra brilha. Sua montagem e edição são estupendas, evidenciadas pelo carinho de pensar em uma identidade própria para cada universo -, às vezes até mudando seu aspect ratio ou alterando seu estilo de filmagem, indo do Cinema chinês à animação. Outro ponto a se destacar é a coreografia. O longa foi responsável por ressuscitar o wire kung-fu e faz as cenas de luta de maneira primorosa, replicando mais uma vez a Sétima Arte chinesa, principalmente bebendo da fonte de O Tigre e o Dragão (2000) e Matrix (1999), referência clara dos idealizadores. O apreço pela arte cinematográfica oriental era tanto que o papel principal foi pensado para Jackie Chan, mas Yeoh, também sendo uma expoente das artes marciais, se encaixou perfeitamente na história.
Os diretores, além de demonstrarem uma escrita criativa que tem êxito ao tratar da depressão de Joy, somada aos seus mommy issues através de uma nova roupagem e ainda sim trazer uma enorme carga filosófica, mostram que conseguem manter as rédeas de uma ideia megalomaníaca. O fato de ser uma direção em dupla faz total sentido presenciando a grandiosidade que o projeto alcança em seu próprio microcosmos, que somente duas mentes poderiam conceber, cada uma completando a visão criativa da outra. Por essa razão, o par também enche o longa com pequenos detalhes deliciosos de se captar, fazendo do filme um gigantesco amontoado de pequenas coisas.
O ponto de convergência da bem estruturada produção se dá na performance de seu elenco. Apesar de outras performances terem chamado mais atenção no circuito de premiações, com somente Ke Huy Quan sendo uma unanimidade como Ator Coadjuvante, o elenco principal forma a trindade da atuação em conjunto em 2022. Michelle Yeoh constrói uma Evelyn baseada em sua própria vivência, em que as várias ramificações de sua carreira a levaram até esta obra. Quan e Hsu são gratas surpresas e ficam no mesmo patamar de Yeoh. Vale lembrar também de James Hong (Os Aventureiros do Bairro Proibido) e Jamie Lee Curtis (Halloween) que constroem personas incríveis para estereótipos até que monótonos.
Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo, mesmo sendo lançado somente em Março – o que, do ponto de vista das premiações, é uma data inoportuna -, vem fazendo a rapa na temporada. São incontáveis as nomeações e as premiações que o longa levou. Dentre as mais célebres, estão as vitórias no Gotham Awards, prêmio do cinema independente, e do Critics Choice Award. Nas duas premiações, a produção levou os troféus de Melhor Filme. Sem contar os vários troféus espalhados entre os diretores, Yeoh e Quan nos incontáveis sindicatos e festivais, o que faz que o termômetro dessa obra para o careca dourado quase ferva.
Considerando somente as indicações à 95ª edição do Oscar deste universo, que foram anunciadas em 24 de janeiro, o longa assume a dianteira da corrida, acumulando onze nomeações. Algumas categorias são um pouco mais acirradas, como Melhor Atriz Coadjuvante, que, apesar da comemorada lembrança de Stephanie Hsu, vai ter seus votos divididos entre os votantes com Jamie Lee Curtis. O páreo também é duro em Melhor Atriz, categoria na qual Michelle Yeoh disputará com a imponente Cate Blanchett por Tár. A situação é um pouco mais tranquila em Melhor Ator Coadjuvante, que sempre teve Ke Huy Quan como favorito; Melhor Diretor para Os Daniels; e Melhor Filme. Neste último, porém, por mais que tenha um enorme apelo, terá que lidar com o conservadorismo da Academia.
Tudo que a obra se desafia a explorar alcança o êxito com maestria. O longa surpreende até a mais cética das audiências, que foi acostumada com tramas frenéticas ao passar dos anos. O filme abraça o caos e beira a anarquia, em uma abdicação das amarras do Cinema e, mesmo se inserindo em uma moda recorrente na indústria, cria uma fórmula própria e extremamente difícil de ser replicada, se colocando no panteão do multiverso.
Em Todo Lugar que você olha durante sua exibição do longa, este se preenche e se completa. Seja pelo espetáculo visual criado pela coreografia de Timothy Eulich, pela fotografia de Spike, a edição de Rogers e a montagem de Kisvarday; pelo texto afiado em discorrer ansiedades modernas ou nas conscientes atuações de seu elenco. O conjunto de acertos converge em uma catarse propositalmente galhofa e tira da obra o status de filme para atribuir o de evento cinematográfico.
Ao Mesmo Tempo em que é uma carta de amor ao Cinema, homenageando 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968), Wong Kar-Wai, Kill Bill (2003) e Ratatouille (2007), a obra também é uma declaração para nós mesmos. Esta coloca um ponto final na pergunta de um milhão de reais do ‘E se?’ ao responder que são esses pontos de inflexão em nossas vidas onde essa indagação é feita que fizeram quem somos hoje. Ainda assim, sobra espaço para nos lembrar o porquê devemos amar essas versões, por mais sem sentido que sejam. Mas a maior recordação que o longa traz é o porquê nós, do topo a base da indústria, amamos o Cinema.
Um tremendo abacaxi. FUJA!
Modernoso que irá envelhecer rapidamente enquanto obra artística. TRASH!!!
Finalmente uma crítica que fala sobre niilismo e existencialismo. Me entristece saber que a grande maioria das pessoas que assistiram, acharam que o filme só falava sobre multiverso e física. Até as outras críticas abordam só essa parte. No meu ver, o filme fala sobre física E filosofia, com um maior enfoque na filosofia, mesmo que mostrado de maneira implícita. É um filme muito bom que aborda temas muito importantes pra sociedade atual, principalmente para os adolescentes que lidam com essa realidade caótica da internet e com essa falta decorrente de sentido pra vida. O que mais me chamou atenção foi a cena final que mostra a “vilã”, Jobu Tupaki, vestida de palhaço/joker e a Evelyn com um terceiro olho. Acredito que essa escolha de figurino das personagens tenha sido a cereja do bolo, e fala sobre o conceito de ego x todo, que também tem muito a ver com meditação e psicodélicos. Uma parte que eu não tinha notado e que li em outra crítica é a frase: “não se esqueça de respirar”, quando ela troca de realidade, que também tem relação com a meditação.