Vitor Evangelista
Ruben Östlund não se preocupa em soar presunçoso ou em talhar o discurso com o intuito de mastigar a jugular que atinge. O sueco, que levou para casa sua segunda Palma de Ouro meses atrás, chega em Triângulo da Tristeza num patamar de sátira e escárnio para além do já apresentado em seu currículo no Cinema. Parte da Perspectiva Internacional da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, seu premiado filme está interessado em caçoar.
Uma porção de jovens adultos sarados aparecem descamisados, sendo entrevistados por um repórter bem-humorado que os cutuca a respeito dos modelos homens receberem um terço do salário de uma mulher na mesma profissão. O protagonista Carl (Harris Dickinson) tenta contornar a situação, mas logo é chamado para uma sala, onde um grupo de empregadores ordena que ele desfile, sem sorrir ou parar. Uma simples caminhada se transforma em lição de casa: tudo precisa de um ritmo, uma batida. Carl aceita o conselho, refaz a tarefa, e logo é mandado embora. “Próximo”, chama a assistente de elenco.
O cenário muda. Agora somos espectadores de um jantar caríssimo dos modelos e namorados Carl e Yaya (Charlbi Dean). Restaurante grã-fino, talheres de prata, champanhe fresco e uma torta de climão sobre quem vai arcar com a conta. Sendo mulher, ela definitivamente tem mais recursos financeiros que ele, entretanto, insiste em se fazer de desentendida e não paga a comida superfaturada que agora repousa em seu estômago. Ele saca o cartão, mas o bate-boca continua até o elevador, onde Carl, como uma assombração, para na linha da porta, não se importando com o apito do sensor de presença e gesticula enfaticamente contra a amada.
Quando encontram um ponto de paz na intriga, os personagens aparecem em outra zona de luxo, dessa vez um iate que navega por águas cristalinas. Momentaneamente eclipsando o foco do casal, o roteiro de Östlund abraça o elenco de apoio, com grande destaque para um russo capitalista, um casal de idosos dono do império de granadas e o capitão do navio. Interpretado com o balaio de Woody Harrelson, o homem é um bêbado irrepreensível, marxista de coração e desiludido com a vida de luxúria que leva.
Na construção de cenários, o filme encontra com eficiência o meio-termo entre os diversos potenciais que um iate proporciona. O design de produção, departamento sob o comando de Josefin Åsberg, junto da fotografia de Fredrik Wenzel, brinca com as locações. Uma hora assumindo o caráter claustrofóbico dos corredores entre quartos, para depois se refrescar no deque e em suas cadeiras de sol, viajar para a metalizada e minúscula cozinha e finalmente atracar no refeitório onde Triangle of Sadness é catalisador de enjoo.
Prato vai, prato vem, a maré não dá trégua e o sistema digestivo dos endinheirados se vira do avesso, botando para fora cada gota de vinho branco e colherada de caviar. No limite do humor escatológico, o desenho de som de Andreas Franck e Bent Holm espreme e aperta cada nota e sinfonia de terror, causando gargalhadas em uma plateia de cinema que não parou de comprimir o bucho até as sequências da ilha perdida.
Território metafórico para a selvageria, a praia apresenta a enunciação do diretor em aplicação e traz à tona a figura messiânica de Dolly De Leon, membro do elenco que mais recebeu atenção do público depois da vitória do filme em Cannes. Sua Abigail sacode a dinâmica da obra, e por mais que seu reinado de poder nasça com os dias contados, a atriz filipina saboreia cada pedaço de diálogo, criado especialmente para seu calibre, autoconsciente da ironia que a cerca.
Por isso, a discussão levantada pelo roteiro original de Ruben Östlund é uma tese de sua ideia de desigualdade e cisão entre o mundo dos ricos e o mundo real. A briga no restaurante apresenta o conflito de renda e classes, o iate dialoga com a teoria que cerca a discussão e a ilha é a prova viva e prática das equações desenhadas. A escolha de canalizar a energia protagonista em dois influencers, profissão esvaziada de propósito, condensa Triângulo da Tristeza na forma de um filme idealizado para pessoas cultas darem boas risadas e satisfazer sua ambição de mudar a realidade.
Para Ruben, a solução é simples: tirar sarro e construir seu White Lotus à beira-mar, povoá-lo com leitores de Ulysses e infectá-lo de moscas zombeteiras, posicionar personagens numa batalha de rimas política e não hesitar em mostrar uma senhora capitalista de idade expelindo fluidos por cima e por baixo. A receita está pronta para divertir audiências, vencer a Palma de Ouro pela segunda vez em 5 anos e sair de cena com a fama de um cineasta de grife.