Vitória Lopes Gomez
O cenário é uma floresta gelada da Noruega. Pai e filha, de no máximo 6 anos, avistam um cervo durante a caçada. A arma na mão do pai se volta do animal à pequena Thelma, que nunca chega a notar a movimentação. Ele continua firme ali, arma em riste apontada para a menina, até o cervo se dispersar. Dos poucos, mas longos minutos, o filme corta para outra cena e uma Thelma crescida está enfrentando seus primeiros dias na faculdade. É assim que Thelma se inicia: ensurdecedora, impactante e misteriosa, a obra de Joachim Trier exagera para preparar o terreno para o que vem a seguir.
O filme é o quarto longa-metragem dirigido pelo cineasta norueguês, que, recentemente, concorreu ao Oscar com A Pior Pessoa do Mundo. Assim como o último, Thelma foi cotado para a premiação: a obra, uma coprodução entre Noruega, Suécia, Dinamarca e França, foi selecionada como a representante do país na categoria Melhor Filme Estrangeiro em 2018, mas não teve força para chegar às indicações anunciadas na grande noite. Na produção, nos primeiros dias de faculdade, as descobertas e novas vontades da religiosa Thelma (Eili Harboe) vêm acompanhadas de estranhos eventos, cada vez mais intensos à medida que ela se desvencilha dos dogmas de sua rígida criação e dá vazão a seus crescentes desejos.
Thelma – obra e protagonista – não tem pressa. Cadenciadamente, Trier conduz sua estrela através das vivências supostamente ordinárias e comuns à juventude, como a descoberta da sexualidade, as experiências em um ambiente cheio de desconhecidos e o desvendar de si própria enquanto pessoa. Para Thelma, porém, tudo fica mais intenso e amedrontador: vinda de uma família superprotetora e extremamente religiosa, com seus dogmas e preconceitos, as descobertas da personagem são sempre encaradas como desviantes por ela e pelos pais. Se o ato de provar bebidas alcoólicas em uma festa com amigos já é uma ação repreendida pelo pai, Trond (Henrik Rafaelsen), a filha se interessar por sua colega de classe é ainda mais errado.
Diante de seus crescentes desejos, são as represálias internalizadas por Thelma que desencadeiam as ocorrências sobrenaturais. No primeiro contato da protagonista com Anja (Kaya Wilkins), a amiga por quem ela se atrai, um corvo se choca contra o vidro da sala de aula. No segundo, uma convulsão a pega de surpresa. Os sentimentos recém-despertos são desconhecidos a ela e, de poderes telecinéticos a visões alucinantes, os acontecimentos se tornam mais frequentes e enérgicos ao passo que a personagem se permite explorá-los. Disso, porém, ela não sabe e não demora a investigar a sua causa.
Drama, Suspense, Terror Psicológico… Thelma poderia ser chamado até de Romance. O diretor não delimita um gênero e nem explica a sua obra, mas a trabalha de forma enigmática e simbólica o tempo todo. Enquanto as protagonistas se conectam e se atraem, as feições suaves e a performance introspectiva das atrizes tornam suas respectivas personagens ainda mais misteriosas. Eili Harboe e Kaya Wilkins, Thelma e Anja respectivamente, exalam os sentimentos não contados, mas pouco dizem ou explicam. O contrário acontece com o pai e a mãe: tão quietos quanto a filha, já se suspeita desde o início que os dois escondem alguma coisa.
Essas percepções, porém, são frutos da direção de Trier. Ora perto, ora afastadas demais, as câmeras do cineasta nos conduzem através da narrativa como se observássemos o desenrolar de um segredo sombrio. A fotografia fria de Jakob Ihre também é essencial para o sentimento de hostilidade e opressão que permeia o longa, e é justamente nos momentos de proximidade das meninas que a tensão acumulada se libera, assim como fazem os poderes de Thelma. A condução cheia de suspense, um dos maiores atrativos de Thelma, também é o que, por vezes, acaba por repeli-lo. Apesar de construído sutilmente, o ritmo lento do filme faz o telespectador encarar trechos monótonos e tediosos. Nada que Trier não se exima na reta final.
Entre momentos mais quietos e outros mais tensos, Thelma acompanha sua protagonista homônima através da descoberta de sua sexualidade, principalmente. A produção não esconde estar mostrando só simbolismos em tela, já que as metáforas têm papel fundamental na interpretação. Metáforas essas diretamente conectadas ao lado religioso da personagem: as visões e alucinações de Thelma têm fortes referências bíblicas, e, a cada quebra de dogma de sua criação sacra, ela provoca abalos telecinéticos em resposta. Explorar, para ela, revela-se uma provocação digna de invocar seu sobrenatural – e ela não escolhe contê-lo.
Apesar das diferentes interpretações dos eventos, é nítido que toda mínima interação da personagem com Anja é o que desencadeia a série de estranhas ocorrências, um reflexo extático da repressão sexual em confronto com os seus desejos. Em uma das cenas mais climáticas e emocionantes, a telecinese faz com que objetos comecem a se mover ao simples toque escondido das duas meninas. Ao final da obra, porém, o pecado do diretor é justamente deixar de lado as sutilezas e apostar no explícito. Em poucos minutos, o filme vai de um de seus momentos mais intrigantes e enigmáticos a um de seus mais literais, e a combustão sobrecarrega o mistério construído até ali.
No seu próprio ritmo, Thelma se mostra objetivamente indecifrável e, da mensagem que se tira da obra, a interpretação basta. Nas comparações do filme com Carrie – A Estranha – também filha de mãe religiosa, também engatilhou poderes durante uma fase decisiva de sua vida -, a juventude e o processo de descoberta pessoal extasiantes, que tangem o sobrenatural, são tão simbólicas quanto a moral por trás da obra (isso é, se há uma). A verdade é que, entre Romance, Drama, Suspense, ou o que qualquer um se atrever a rotular Thelma, o seu Terror também é libertador.