Gabriel Oliveira F. Arruda e Nathália Mendes
Ecoando sua celebrada minissérie Chernobyl, Craig Mazin nos inicia em The Last of Us com um prólogo: em um talk show dos anos 1960, acompanhamos um biólogo carismático (John Hannah) que avisa tanto o entrevistador (Josh Brener) quanto a plateia que o verdadeiro perigo para a extinção da raça humana não são vírus ou bactérias, mas os fungos. Quando questionado sobre o que aconteceria no evento destes organismos evoluírem para nos infectar, ele responde com um simples “Nós perderíamos”. E, pelas próximas nove semanas, fomos convidados a imaginar como seria um mundo onde é justamente isso o que aconteceu: nós perdemos.
Baseada no aclamado videogame de 2013, a nova série da HBO é apenas a mais recente adição ao cânone de narrativas dedicadas à imaginar o que vem depois que o mundo acaba. Ao longo da última década, com a ascensão de The Walking Dead na televisão norte-americana, entre outras produções, tivemos a popularização do cenário pós-apocalíptico como um modelo para a formação de questionamentos pertinentes à natureza humana: o que acontece depois que nós “perdemos”? Quem nos tornamos quando não há mais o que salvar, quando as estruturas sociais estão irrevogavelmente arruinadas e agora é cada um por si? O quão mais obcecados podemos ficar pelo ator Pedro Pascal?
Em The Last of Us, a resposta a essas perguntas está na jornada de Joel (Pascal) e Ellie (Bella Ramsey) por um Estados Unidos devastado pela infecção fúngica que destruiu todo o planeta 20 anos atrás, responsável por transformar a maior parte da população em monstros zumbificados e macabros. Ao longo de nove capítulos, testemunhamos personagens sofrendo perda atrás de perda, tragédias de proporções bíblicas e alegrias tão passageiras que sua mera existência se torna milagrosa. Até o final, somos relembrados repetidamente de que, nesse mundo, não há como vencer.
Após esse prólogo arrepiante, saltamos para 2003 e somos apresentados à família Miller, composta por Joel, sua filha Sarah (Nico Parker) e seu irmão Tommy (Gabriel Luna). Dirigido por Mazin, produtor executivo e co-showrunner do seriado, o primeiro capítulo da temporada, Quando Estiver Perdido na Escuridão, é uma introdução não apenas ao apocalipse pessoal de seu protagonista, mas à característica fundamental da tragédia que parece perseguir todos aqueles que sobreviveram ao surto do fungo Cordyceps: a memória.
No decorrer dos episódios, The Last of Us constrói uma linguagem de flashbacks que expandem a dimensão do luto da narrativa, originalmente restrita apenas à perspectiva de Joel, um sobrevivente marcado por um passado trágico e violento, e Ellie, uma garota que aparenta ser imune à infecção. Juntos, eles atravessam os Estados Unidos à procura dos Vagalumes, um grupo rebelde que ainda procura pela cura e luta contra a tirania imposta pela FEDRA (Agência Federal de Resposta à Desastres, em tradução livre), uma organização militar composta pelos remanescentes do governo norte-americano.
Mas essa expansão não ocasiona perda da perspectiva original, e sim a direciona para outros formatos através da condução genial de Mazin. A câmera, por exemplo, quase sempre está junto de seus personagens, levada conforme os próprios descobrem o desenrolar da narrativa. Aqui, a direção é notável de duas maneiras: a primeira por criar uma imersão profunda no drama e a outra pelo paralelo com a posição dos jogadores de videogame, no qual se é ativamente o protagonista. Tais características contribuem fortemente para que a série seja uma experiência completa, mesmo aos antigos fãs da franquia.
Neil Druckmann, criador da franquia e co-showrunner ao lado de Mazin, tira proveito do formato serializado ao transformar as maneiras com que encaramos suas personagens. Joel, que antes tinha sua capacidade física atrelada a habilidade do jogador que o comanda, agora recebe permissão para falhar. Acabaram as hordas de inimigos interpostas como obstáculos entre o jogador e seu objetivo: o uso da violência na série é clínico, humanizando tanto os infectados quanto os sobreviventes que antagonizam o duo ao longo da viagem, ecoando algumas das sensibilidades e temas que só veríamos na sequência de 2020, The Last of Us Part II.
A maioria das adições às tramas são breves e servem para ampliar a história de personagens já conhecidos. The Last of Us não esconde sua devoção ao material original, recriando algumas das cenas mais famosas do jogo quadro a quadro, em um exercício de fidelidade que poderia até ser banal ou uma mera tentativa de manter laços firmes com sua obra precursora, não fosse a paixão com que cada um dos beats é performado por seus novos intérpretes. Tanto Pascal quanto Ramsey preenchem belamente seus arquétipos e os inferem com suas próprias vulnerabilidades, criando entre si uma sintonia que carrega a narrativa adiante.
Enquanto o Joel de Pascal parece ser mais frágil que o dos jogos, a Ellie de Ramsey (Bellie, para os íntimos) desenvolve sua própria relação com a violência nesse mundo sem lei, e um dos arcos narrativos mais claros é a perda de sua inocência: ela nasceu nesse mundo condenado e, portanto, ainda não sabe o que é perder da mesma maneira que seu companheiro. Joel, em contrapartida, é obrigado a reaprender a agonia da esperança.
Após feitas as apresentações, The Last of Us rapidamente estabelece o padrão intermitente de sua narrativa, introduzindo em cada episódio novos personagens que cruzam física e emocionalmente com a jornada dos protagonistas, mas que nunca permanecem por mais de um capítulo. Joel e Ellie são repetidamente confrontados com uma nova versão do amor que sentimos uns pelos outros e suas terríveis e maravilhosas consequências. Mazin faz questão de examiná-lo não como a salvação ou a perdição da humanidade, mas como algo tão intrínseco, essencial e humano que é praticamente impossível separá-lo de nós mesmos. Amamos, independente das consequências, até no fim do mundo.
E talvez nenhum episódio capture tão bem esse conflito primordial quanto o terceiro, intitulado Por Muito, Muito Tempo. Apesar de começar nas alças do episódio anterior, o roteiro de Mazin rapidamente salta no tempo para 20 anos no passado, quando acompanhamos Bill (Nick Offerman, em uma das grandes performances de sua carreira), um “sobrevivencialista” que já se preparava para o fim do mundo bem antes dos fungos começarem à nos perseguir. Após alguns anos sozinho, ele conhece Frank (Murray Bartlett), um homem gentil à procura de abrigo que, mesmo após uma introdução nada amistosa, consegue se conectar com Bill em um nível íntimo e sensível.
Dirigido por Peter Hoar, vencedor do BAFTA por seu trabalho na minissérie It’s a Sin, o capítulo marca o maior desvio do material original até o momento, e é uma lição de adaptação por si só. Ao se debruçar tão fixamente sobre a vida de dois personagens coadjuvantes, The Last of Us revela sua própria sensibilidade e nos conta, com rigor absoluto, uma das histórias de amor mais comoventes entre as obras recentes da televisão. Apesar de se desviar do caminho original da narrativa, o texto ainda funciona para espelhar a jornada dos protagonistas, fazendo uma ponte com a dificuldade de Joel em se abrir com Ellie e ecoando o luto que ainda permeia seu personagem.
Depois do casal, Joel e Ellie se deparam com uma dupla de narrativa completamente oposta em seus meios e fins, mas semelhante na intensidade de seu amor. Se o destino de Sam (Keivonn Montreal) e Henry (Lamar Johnson), dois irmãos sobrevivendo na Zona de Quarentena do Kansas sob uma organização de Estado diferente da FEDRA, já era avassalador no videogame, ele ganha uma nova perspectiva ao ser contada após um romance. Para além da adição inclusiva de colocar Sam como uma criança surda e o conflito moral que levou Henry a ser um dedo duro, o mais importante é o contraste de ambos com Bill e Frank.
As histórias paralelas de The Last of Us irão, mais de uma vez, modelar a visão que nós espectadores teremos ao acompanhar o desenrolar dos protagonistas, mas a função principal delas, no entanto, é transformar como Joel compreende o amor e a esperança. Por amor, tanto Bill quanto Henry não encontraram saída para continuar. Ainda que suas ações finais tenham sido semelhantes, o motivador para suas escolhas e as situações em que se encontravam eram completamente diferentes. Aos poucos, Joel passa a questionar se há contexto em que seu futuro seja outro, e por isso foi de extrema importância encontrar Tommy em sua vila comunista na sequência.
Joel enxerga na comunidade em que seu irmão vive muito mais do que a mera possibilidade de segurança em meio ao apocalipse. Jackson apresenta uma sociedade alternativa onde a vida deixa de ser sobrevivência, a cura para o Cordyceps é dispensável e a luta contra novas organizações de Estado está distante. Ali, Joel vê uma chance. Não para ele, à princípio, não para um homem que havia fracassado inúmeras vezes, alguém transformado pela crueldade da tragédia em seu entorno.
Após uma jornada de conflito interno, nosso protagonista atinge o ápice ao fim do sexto episódio, Parentesco. Ele resiste à esperança e ao sentimento de amor paterno intrínseco em cada músculo de seu corpo, mas é impossível abandonar aquilo que o define em essência, mesmo que a memória de Sarah ainda o paralise por completo. Na performance de Pascal, contemplamos um Joel que revive o trauma da perda toda vez que olha para Ellie, tão vulnerável ao ponto de nos sufocar com a intensidade da dor e frustração que carrega.
Entendemos o significado de “continuar pela família” em um mundo onde a perda é inevitável neste momento crucial da história. Quando Joel assume que não pode desistir da esperança que acaba de tomá-lo por completo, ele também permite que Ellie tenha a chance de explicitar sua vontade. Para ouvidos atentos, seu querer por Joel já estava declarado ao final do primeiro episódio, nas linhas musicais de Never Let Me Down Again do Depeche Mode, quando a garota deu seus primeiros passos para fora da quarentena de Boston. Agora, o gesto de escolhê-lo sentencia a separação entre Ellie e Sarah como indivíduos.
Assim como era no game, a trilha sonora do compositor argentino Gustavo Santaolalla (O Segredo de Brokeback Mountain, Babel) não preenche os espaços silenciosos da série, mas reflete as emoções das personagens quando palavras não são mais suficientes. O icônico tema da franquia, tocado num ronroco, faz presença na abertura e nos prepara para a fragilidade potente do mundo de The Last of Us. Puxando algumas faixas e inspirações da trilha do segundo jogo, Santaolalla parece querer fazer uma ponte temática entre o presente e o futuro, o que não havia sido possível em 2013, quando a primeira iteração da narrativa foi apresentada.
Para intensificar essa ponte, Mazin e Druckmann fazem uso deliberado e criativo das faixas licenciadas, especialmente com Long Long Time, a balada melancólica de Linda Ronstadt no terceiro episódio, e a repetição de Never Let Me Down Again ao final do sexto capítulo. Jessica Mazin, filha de Craig, faz um cover sóbrio da música que ecoa não só a narrativa, mas a conexão entre pais e filhas que está no cerne da premissa do seriado. Além dela, canções de Pearl Jam, a-ha e Lotte Kestner fazem referência à vindoura segunda parte da série, mas que aqui são ressignificadas e retrabalhados para desatar o nó de emoções das personagens.
Não é de hoje que Hollywood tem investido em adaptações de videogames para o audiovisual: séries animadas como Castlevania e Arcane tem forjado um novo patamar nos últimos anos, enquanto produções como Uncharted: Fora do Mapa e Halo mostram o quanto os grandes estúdios estão dispostos a gastar nessas ideias. Apesar de à primeira vista não parecer tão grandioso quanto estas produções, realizar o mundo de The Last of Us de maneira crível foi um esforço milionário por parte da HBO – custando quase tanto quanto algumas das últimas temporadas de Game of Thrones.
Mesmo com o uso de diversos efeitos práticos (principalmente na maquiagem e prostéticos dos seres infectados pelo fungo), construir o mundo pós-apocalíptico da desenvolvedora Naughty Dog não teria sido possível sem o trabalho dos artistas digitais do estúdio DNEG (responsáveis também pelos filmes do cineasta Christopher Nolan). Dispensando sequências de ação bombásticas, o trabalho desses artistas é focado em preencher o mundo idealizado por Druckmann e Bruce Straley, co-criador do jogo original. Quando Ellie encara o mundo fora da Zona de Quarentena pela primeira vez, somos apresentados às ruínas de Boston e aos 20 anos de não-interferência humana em uma grande metrópole: narrativas que, assim como no game, são contadas puramente através do cenário.
O elenco ainda conta com nomes como Anna Torv (Mindhunter, Fringe), Melanie Lynskey (Yellowjackets) e Merle Dandridge, que reprisa o papel de Marlene, líder dos Vagalumes. Troy Baker e Ashley Johnson, atores originais de Joel e Ellie, participaram do seriado em novos papéis, novamente demonstrando o apreço de The Last of Us por seu material original, uma das características que o separa drasticamente de grande parte das adaptações cinematográficas de videogames dos últimos 30 anos. Jogador assumido, Craig Mazin não poupa elogios para o jogo de PlayStation, orgulhosamente descrevendo-o como a “melhor estória já contada em um videogame”.
Mesmo com a HBO bancando a produção, havia uma boa dose de ceticismo na recepção do anúncio da série, já que para muitos a narrativa do jogo da Naughty Dog representa um dos pináculos absolutos do meio. Após anos de fancasts que iam desde Hugh Jackman e Josh Brolin até Maisie Williams e Kaitlyn Dever, a escalação de Pedro Pascal e Bella Ramsey foi recebida num espectro de entusiasmo e absurdo. Apesar de Pascal ter marcado seu nome na cultura pop nos últimos anos com suas participações em O Mandaloriano, Game of Thrones e Kingsmen, ele não combinava com a ideia que muitos tinham de Joel como o contrabandista texano durão e barbudo.
Bella, por outro lado, teve que lidar com uma série de insultos à sua aparência de pessoas clamando que elu (Ramsey se identifica como não-binárie e atende por todos os pronomes) não era “atraente” o suficiente para interpretar Ellie, uma personagem de 14 anos. Mal disfarçado de crítica, esse tipo de comentário misógino foi sendo aos poucos ofuscado pela atuação virtuosa de Ramsey, chegando ao seu auge interpretativo nos episódios finais da temporada. No sétimo capítulo, intitulado O Que Deixamos Para Trás, elu contracena com a talentosa Storm Reid (Euphoria) e sintetiza as melhores qualidades do seriado em uma história sobre amor jovem e a perda da inocência que, apesar de trágica, vêm acompanhado do que talvez seja o mote da narrativa:
Todo mundo vai terminar assim, cedo ou tarde, né? Acontece mais rápido pra alguns. Mas nós não desistimos. Sejam dois minutos ou dois dias, nós não abrimos mão disso. Eu não quero abrir mão disso.
Com Quando Mais Precisamos, o oitavo episódio da série, podemos interpretar a premissa da frase a partir de outra ótica. Mazin destaca que o capítulo se trata integralmente sobre depravação humana e é nele que temos o ápice de maturação de Ramsey em The Last of Us. Sua personagem ainda não havia precisado agir com as próprias mãos, mas elu consegue exprimir de maneira exímia o desespero de Ellie ao precisar sobreviver sozinha. A crueldade do outro obriga a personagem a enxergar o que há de obscuro nela própria e a abrir mão de outras partes de sua inocência para que possa continuar. No fim, vemos uma Ellie completamente transformada por sua própria violência.
Sob a direção de Ali Abbasi, o caráter violento da série assume sua forma mais genuína na brilhante composição do episódio. O diretor prova que sabe as relações profundas e divergentes que os seres humanos possuem com a violência, pois, diferentemente da perspectiva que adotou em Holy Spider, aqui ele amplia o impacto que ações brutais proporcionam nas personagens e não enfoca sua exposição. De fato, Abbasi foi a pessoa certa para criar essa atmosfera, que também funciona como contraponto à perspectiva de jogador do videogame. Se ao jogarmos, a nossa vontade e habilidade irão medir a proporção da agressividade com que combatemos inimigos, no seriado somos obrigados a assistir os resultados dessas ações.
Na HBO, The Last of Us verdadeiramente transcende o material de origem ao respeitá-lo, enquanto busca contar uma história tão querida da melhor maneira possível em outro meio. A tragédia de Joel e Ellie adquire novos contornos quando vista por uma lente teatral, em que atores de produções anteriores são convidados para reprisar seus papéis ou introduzir novas personagens. Somos convidados não só a acompanhá-los por esse mundo sombrio, mas a entender o porquê de ser assim e, consequentemente, aceitar a escuridão que traz consigo. Perdemos junto com os personagens e voltamos toda semana para vê-los perderem mais um pouco, ao ponto em que a narrativa interroga o próprio espectador: “Porquê seguir em frente se você não tem esperança?”
Não há uma resposta simples ou ao menos satisfatória. Continuamos porque, seja nas últimas 10 horas ou nos últimos 10 anos, nos apaixonamos por esses personagens, porque amamos Ellie tanto quanto Joel a ama e, portanto, entendemos o que ele deve fazer para mantê-la viva. Apesar de não controlarmos mais suas ações, ainda sentimos que estamos ao seu lado durante todos os passos da jornada. Compartilhamos as misérias e as risadas com eles de maneira particular e continuamos, apesar de tudo. Não desistimos desses personagens nem quando eles desistem de si mesmos e, quando paramos para pensar no motivo, é realmente difícil elaborar algo além do amor.