Guilherme Machado Leal
É praticamente impossível falar sobre The Flash sem mencionar o caso Ezra Miller e os seus desdobramentos. O longa-metragem foi adiado inúmeras vezes, tendo a primeira data de estreia para o ano de 2018. Trocas na direção, a pandemia do Coronavírus e problemas com a estrela principal fizeram com que a produção saísse apenas em Junho de 2023. A postura de Miller, fora das câmeras, é um acontecimento à parte, uma vez que a lista de crimes cometidos por elu é vasta e demanda que se tenha uma conversa prévia acerca dos ocorridos.
A discussão sobre separar a obra do artista está mais fervorosa do que nunca. Não se aceita mais – como sempre deveria ter sido – um longa cinematográfico com a existência de talentos problemáticos, já que são eles que dão vida a personagens queridos por fãs ao redor do globo. E com o carismático Barry Allen não seria diferente: por interpretar o homem mais veloz do mundo, Ezra Miller tinha o compromisso de fazer o seu trabalho da forma correta, mas o histórico criminal delu se entrelaçou à produção da DC Comics, o que dificulta a análise do filme sem esse histórico lamentável.
Comandado por Andy Muschietti (It – A Coisa), o filme de origem do super-herói tem como principal tema o Flashpoint, icônica história em que o personagem volta no tempo para mudar o momento mais traumatizante da sua vida, a morte da mãe, Nora Allen (Maribel Verdú). Criando uma outra linha temporal, o jovem se vê em apuros com a inevitável transformação de tudo que conhece em uma realidade completamente diferente. A partir disso, The Flash tem dois grandes propósitos: apresentar ao público o seu protagonista e retratar de maneira fiel um dos arcos mais interessantes de Allen.
A cena inicial evidencia que as intenções não foram concretizadas. Em menos de cinco minutos, Batman (Ben Affleck) participa da clássica cena de perseguição presente em filmes do gênero, mostrando que aqui o foco, infelizmente, não é o Flash. Aliás, tanto em Capitão América: Soldado Invernal quanto em O Espetacular Homem-Aranha 2, obras da concorrente Marvel, a história começa com o protagonista em perigo, no entanto, em The Flash, a tentativa não tem o mesmo brilho. Isso porque, como presente nos títulos, as duas histórias mencionadas eram sequências dos longas que apresentavam esses personagens. Enquanto isso, na trama do homem mais rápido do mundo, parece que os envolvidos na produção se convencem de que o espectador já conhece e entende sobre o universo fantasioso, o que não é o caso.
Fora isso, além da presença do Cavaleiro das Trevas, a querida Mulher-Maravilha (Gal Gadot) aparece, utiliza o seu laço da verdade e sai de cena com uma frase-efeito. Mais uma vez, a excessiva quantidade de personagens destoa do resto da história, pois escancara em tela o descaso com seu personagem principal. É visível que as características de Barry Allen, bem como as especificidades de seu universo e os personagens que orbitam seu entorno são apenas frações dos 144 minutos recheados de surpresas para os fãs aficionados nas HQs.
O maior problema de The Flash, sem sombra de dúvidas, é a relativização do pensamento crítico do seu público-alvo. Aqui, não importa conhecer o membro mais carismático da Liga da Justiça, mesmo que os acontecimentos presentes se deem a partir das ações de Allen. Então, ao tentar compreender o que está acontecendo, o telespectador se vê numa confusão maior do que aquela cometida pelo herói. Assim, conforme os minutos se passam, os deslizes causados pelo péssimo trabalho no longa ficam ainda mais evidentes.
Apesar da sua conturbada vida pública, Ezra Miller surpreende com a atuação e é um ótimo protagonista. Por conta da volta de Flash ao passado, uma outra realidade é criada e uma nova versão de Barry Allen se junta ao herói que já vimos em outros filmes da DC – como a sua breve aparição em Batman Vs Superman e a sua participação em A Liga Da Justiça. Miller tira de letra e interpreta com maestria os trejeitos das duas versões do mesmo personagem, sendo esses momentos de interações entre os seus diferentes ‘eus’, os melhores do filme.
A tradicional cena sobre o Multiverso, em que eles apostam nos diálogos expositivos acerca do tema, também se encontra em The Flash. Explicada pelo Batman de Michael Keaton com o uso de macarrões, o Bruce Wayne da nova linha temporal é apenas um apoio aos demais personagens da história, uma vez que a sua participação para a trama é descartável. Além disso, a Supergirl (Sasha Calle), prima do Superman, está presente, assim como os enquadramentos usados nas obras dos kryptonianos: nos momentos da personagem, o diretor capta a grandiosidade de Kara Zor-El ao colocá-la em câmera acima dos humanos. Entretanto, ambas as participações pouco acrescentam à construção de Barry, sendo reduzidas a puro fan-service.
Todo filme de herói precisa de um vilão, pois é ele que sustenta os conflitos da história inteira. No longa de estreia de Barry Allen, o antagonista é o General Zod (Michael Shannon), reprisando o seu papel em O Homem de Aço (2013). Reciclando personagem no aniversário de dez anos do primeiro filme do Superman de Henry Cavill, chega a ser cômico – para não dizer trágico –, o mau-caratismo em priorizar Zod aos incontáveis vilões de Flash, dado que a história é sobre ele. Nesse sentido, colocar Shannon de volta é apostar todas as fichas no confortável, naquilo que já foi feito e não respeitar a essência do homem mais veloz do mundo.
Fora isso, as cenas de luta escancaram o terrível CGI, defendido pelo diretor com uma desculpa sem sentido. Exageradas, as sequências que apresentam as potências de Flash como super-herói são fracas e, não ironicamente, chegam a ser lentas demais. Podendo ser uma referência ao slow motion de Zack Snyder, os combates se tornam um dos desfalques da trama. Outro ponto muito presente em histórias do gênero são as piadas, ainda mais se levarmos em conta o herói em questão.
Nesse caso, todos os trocadilhos com velocidade são patéticos e não poderiam expor de forma mais clara a incompetência dos envolvidos no roteiro. Aliás, é preciso ‘dar nome aos bois’: John Francis Daley, Joby Harold, Jonathan Goldstein e Christina Hodson formam o quarteto que escreveu as tentativas de piadas, tornando o longa difícil de ser terminado. Vale destacar que Daley e Goldstein, ambos presentes no texto de Homem-Aranha: De Volta ao Lar, aqui não conseguem repetir o feito alcançado com o teioso.
Quem se lembra de Iris West (Kiersey Clemons)? A repórter do Picture News e par romântico de Barry Allen não possui desenvolvimento algum e o seu carisma – que pode ser visto na série da CW, interpretada por Candice Patton – não é aproveitado devido à enorme quantidade de tramas que o longa deseja abordar. Temas como a relação do herói com West são necessários para o desenvolvimento de seu universo e, deixá-los de fora ou retratá-los com cenas curtas, é se desfazer da natureza do Velocista Escarlate. Allen, em termos de arcos de personagem, é muito rico e merece que as suas histórias sejam contadas, não colocadas em segundo plano.
Com uma cena final digna de um comercial de perfume, The Flash perde a corrida contra o tempo e se atrapalha com suas ideias infinitas. O sentimento, ao terminar o filme, é do que ele poderia ter sido: uma boa história de origem. Nem mesmo os ínfimos momentos de alma que o longa possui conseguem fazer jus ao potencial que o herói tem para mostrar. “Às vezes, é preciso desistir”, frase dita em certo ponto da história, lamentavelmente, resume o que foi a experiência dirigida por Muschietti. Desculpe, Barry Allen, mas dessa vez, você não foi o homem mais rápido. Na verdade, se atrasou e perdeu a corrida, aquela que sempre foi sua.