Caio Machado
Em 1969, os membros do grupo musical The Beatles se reuniram para a produção do que viria a ser o álbum Let It Be. O cineasta estadunidense Michael Lindsay-Hogg foi chamado para filmar o processo de concepção do disco, o que deu origem ao documentário que leva o mesmo nome do álbum e contém também o famoso espetáculo no terraço, última aparição pública da banda. Mais de 5 décadas depois, foi lançada a série documental The Beatles: Get Back, dirigida e produzida por Peter Jackson (O Hobbit, King Kong), que se aproveita das imagens de arquivo produzidas em 1969 para dar origem a 3 episódios, totalizando aproximadamente 8 horas de duração.
Indicada em 5 categorias do Emmy 2022, incluindo Melhor Série Documental ou de Não-Ficção, Melhor Direção em Documentário/Programa de Não-Ficção, para Peter Jackson e Melhor Montagem em Programa de Não-Ficção, para Jabez Olssen, a produção impressiona por seu trabalho na reconstrução das filmagens e áudios. As imagens apresentam uma nitidez quase assustadora e as conversas entre os presentes no estúdio, antes abafadas pelo som dos instrumentos musicais, agora são perfeitamente audíveis, graças a uma inovação trazida por Jackson. O diretor utilizou uma inteligência artificial criada para captar as vozes do quarteto e separá-las do som dos instrumentos.
O cuidado para evidenciar os diálogos entre os músicos pode passar despercebido na maior parte do tempo e só é evidenciado em uma cena logo no primeiro episódio, Parte 1: Dias 1-7, em que os membros da banda falam enquanto afinam suas guitarras e um dos técnicos ali presentes avisa que o som dos instrumentos está atrapalhando ouvi-los nos microfones. O diálogo funciona como um lembrete de que essa parte dos bastidores, antes deixada de lado por conta das limitações da época, só foi possível de ser mostrada aos fãs da banda agora por causa da tecnologia contemporânea.
Ao longo dos 3 episódios de The Beatles: Get Back, Peter Jackson parece mais interessado em acompanhar o processo criativo de Paul, John, George e Ringo, como um fã apaixonado sentado num canto do estúdio sem atrapalhar, do que criar uma narrativa repleta de tensões entre os quatro, já perto do fim da banda. Os atritos existem, é claro, mas aparecem como consequência da divergência de opiniões que acompanha a produção de um álbum ao longo de 21 dias dentro do estúdio.
As discussões entre eles são mostradas da maneira mais honesta possível, exibindo-os como seres humanos que querem apenas entregar as melhores músicas, sem cair em nenhuma armadilha sensacionalista barata e cheia de intrigas para manter a atenção do espectador. Na verdade, o documentário assume que quem está disposto a enfrentar suas gigantescas 8 horas já gosta bastante do quarteto e não tem pressa em mostrar as dinâmicas dentro do estúdio. Seu foco está em mostrar o trabalho criativo sem romantizá-lo, com seus altos e baixos, seus momentos mágicos de pura sintonia e os períodos cansativos, em que ninguém parece sair do lugar.
Como resultado, a série joga seu holofote em cenas bastante especiais, como quando a banda consegue chegar na versão de Get Back que conhecemos hoje depois de ensaiar a canção por milhões de vezes ou mesmo quando os quatro estão tocando músicas que gostam apenas pelo prazer do ato, esquecendo um pouco o prazo que se aproximava. Por outro lado, também ocorre do documentário destacar momentos que se estendem demais, a exemplo do enorme debate tido entre Os Beatles e os produtores para decidir onde seria o show que pretendiam fazer.
O espectador, alguém vivendo no mundo atual onde os Beatles já se tornaram uma memória no mundo da música, sabe que esse concerto foi realizado no terraço da Apple Corps, mas, para chegar nele, precisa acompanhar uma discussão demorada, cheia das ideias mais absurdas possíveis, o que prejudica no ritmo do documentário como um todo. Quando a ideia do terraço surge, é um alívio para os músicos, os técnicos e para quem assiste. Além de mostrar os Beatles como seres humanos normais que discutem, comem, bebem, fumam e fazem brincadeiras em frente às câmeras, a produção de Peter Jackson também serve para mostrar como é difícil tomar decisões em conjunto.
A ideia de acompanhar tudo, incluindo os lados negativos, se mantém quando chega a hora da última aparição pública da banda. A obra opta por dividir a tela em 3 partes, na tentativa de acompanhar a apresentação do grupo em vários ângulos e a reação do povo londrino. O documentário insere o espectador bem no centro da ação e mostra depoimentos de pessoas maravilhadas por estarem presenciando um momento histórico, pessoas que não fazem ideia do que está acontecendo e aqueles que estão completamente descontentes com o barulho que os músicos estão fazendo, além de mostrar a chegada dos policiais no prédio do concerto.
Parece muita informação para acompanhar ao mesmo tempo e realmente é. A escolha da divisão da tela em 3 quadrados torna a experiência ainda mais confusa e é difícil escolher para qual lado olhar. Porém, quando os olhos se acostumam àquele frenesi, é algo maravilhoso de assistir. É o momento mais catártico dos 3 episódios, capaz de causar arrepios pelo fato da banda estar em perfeita sintonia depois de longas horas de ensaios e pelo olhar empolgado do público, nos telhados e na rua. É o canto do cisne de um grupo que já havia deixado sua marca no mundo e decidiu entrar para a história em sua terra natal uma última vez, num terraço, para que qualquer um pudesse ouvir.
The Beatles: Get Back é grandioso como a banda que acompanha ao longo de semanas de gravação. O documentário compreende o processo criativo como algo que demanda tempo, não é belo a todo momento e tem sim seus pontos baixos. Ao mesmo tempo, encanta por humanizar Paul, John, George e Ringo e mostrar momentos bastante especiais entre eles, sejam quando estão tocando alguma música ou fazendo alguma brincadeira para as câmeras que os rodeavam. Apesar de ser um pouco intimidadora em um primeiro momento, por conta de sua duração, assistir à produção é uma experiência extremamente recompensadora para qualquer um que decidir se aventurar nessa odisseia que deu origem a Let It Be.