Mariana Nicastro
Uma renomada companhia de dança alemã guarda um segredo: suas dançarinas são parte de um coven. Suas coreografias, rituais. E sua mais nova aluna, seria ela uma presa fácil? Ou uma bruxa em ascensão? Suspiria: A Dança do Medo é uma contemplação às bruxas contemporâneas através de um Terror psicológico, folk e gore.
Lançado no Brasil em 11 de abril de 2019, pela Amazon Prime Studios, o filme é dirigido por Luca Guadagnino. O diretor, aqui, está distante do subgênero do – indicado quatro vezes ao Oscar – Me Chame pelo Seu Nome (2018). Contudo, a sua habilidade de criar atmosferas instigantes permanece intacta. Comum, tanto ao seu romance dramático, quanto ao seu horror sombrio.
Inicialmente pensado como uma releitura da obra original, Suspiria (1977), este filme em muito se assemelha e, ao mesmo tempo, em muito diverge, de seu antecessor. Um clássico setentista, o primeiro trata-se de um giallo italiano. Repleto de estilo, personalidade e identidade, assim como seu diretor, Dario Argento. É uma obra única, cheia de luzes e cores, uso dos sonhos e atuações novelescas, que envelhece como vinho.
A premissa inicial de ambos os filmes permanece a mesma: Susie Bannion (Dakota Johnson, na obra mais recente) é uma garota estadunidense que viaja até Berlim para ingressar em uma grandiosa companhia de dança. Convivendo diariamente no local, a protagonista se vê presa e perturbada por um ambiente cheio de mistérios, acontecimentos, pessoas estranhas e maus pressentimentos.
Apesar de dividirem a trama principal, logo, as obras correm por caminhos bastante distintos. Suspiria de 77 pende para um surrealismo e um estilo vibrante, com muitas cores e suspense envolvidos. Enquanto isso, o Suspiria de 2019 é mais sóbrio, sério, e se utiliza muito do Terror físico para intercalar com a trama mais lenta e sugestiva.
As danças, elemento fundamental para a história, também são parte da linguagem do filme. Elas trazem um misto de beleza, drama, violência e incômodo. Inseridas no contexto, qualquer coreografia passa a sensação de que algo assustador está por vir.
A sugestividade e a curiosidade são constantes na obra e alimentam o ritmo da trama principal. Já as secundárias, por vezes sofrem um pouco com a lentidão e falta de uma dinâmica instigante e reveladora em seu processo, importantes em um plot de investigação.
Contudo, o longa é capaz de ressignificar a história e somar interpretações subjetivas à temática proposta por seu antecessor. Liberdade, identidade e aceitação são interpretações do todo, que se utilizam do subgênero das bruxas para transmitir uma mensagem. Trata-se, afinal, de um aspecto muito comum no folk da atualidade, presente em A Bruxa (2016) e em Midsommar (2019).
Nesse sentido, a bruxa, a mulher, é apresentada como um ser marginalizado, injustiçado na realidade a qual pertence. Essas obras solucionam essa questão com identificação e pertencimento, seja por meio da força, uso de poderes ou acolhimento por semelhantes. Em Suspiria, a trajetória de Susie não é diferente.
Além de apresentar elementos feministas, o filme também tem um forte caráter queer. A direção de Guadagnino transborda de olhares sensíveis para essas temáticas, ainda que encabeçada por um homem. Seus filmes têm características que destoam de perspectivas e representações heteronormativas. Seja na exploração de personagens, ou ideias, como no caso da liberdade e aceitação estimuladas na trama.
Quanto ao horror físico do longa, o uso de cenas chocantes é crescente, com sangue, fraturas e situações tão visualmente bizarras, que impactam e fazem com que algumas cenas instalem-se na memória por muito tempo. A montagem de Walter Fasano é rápida, com toques teatrais e criativos. Como em um solo de dança de Susie que desencadeia, simultaneamente, um ritual brutal.
A fotografia de Sayombhu Mukdeeprom ganha tons frios e sombrios. A Berlim representada é apática e cinzenta. O longa carece de cores, com exceção do vermelho. Essa cor está cada vez mais presente, de forma progressiva, até brilhar durante o terceiro ato, representando sangue, violência e a libertação do coven.
O grotesco também ganha vida na caracterização e maquiagens, seja de vítimas, ou de antagonistas. Quanto às últimas, Tilda Swinton é um fenômeno. Sempre atuando excepcionalmente em papéis exóticos e – mais de uma vez – como feiticeira ou maga, em Suspiria ela brilha e rouba toda a cena para si. Sua Madame Blanc é imponente e assustadora.
Mesmo quando ela esboça simpatia para com Susie, a diretora da companhia aparenta guardar os mais terríveis segredos e planos. O destaque para a atriz ainda é intensificado pelo fato de ela ter, não um, mas três papéis dentro do longa. Os três exigem de si personalidades e características completamente diferentes: Blanc, o Dr. Jozef Klemperer e Helena Markos, a líder da companhia – e do coven.
O Dr. Jozef Klemperer é um psiquiatra judeu que atendia uma das alunas de Blanc (Chlöe Grace Moretz) e que, de forma paralela a trama principal, passa a investigar relatos de sua paciente, envolvendo a companhia de dança. A maquiagem é convincente, ainda que não passe despercebido o fato de que há algo de estranho em Jozef.
Já Helena Markos é, em tese, a Mater Suspiriorum, bruxa suprema, ou como a chamam: The Mother of Sorrow (A Mãe das Dores). A construção misteriosa em torno de sua existência corrobora para seu papel, ainda que breve, porém muito significativo. Markos também aparece no longa de 77, em outro contexto e com outra personalidade.
Sobre Markos, o longa dialoga em diversos níveis a respeito da dor, a partir da mitologia das Três Mães. Dario Argento desenvolveu sua famosa trilogia inspirado em um ensaio de 1845, de Thomas de Quincey. Esse ensaio tratava da história de Três Mães que acompanhariam a deusa romana Levana. Uma delas, Mater Suspiriorum, é a senhora dos suspiros, aflições e dores humanas.
Considerando a trama da Mãe das Dores, o desfecho do longa é dominado pelo simbolismo, grandiosidade e pelo extremo horror visual, brutal e explícito. Susie enfim abraça seu destino, com aceitação e imponência. A atuação de Johnson é precisa e capaz de transmitir a calma e poder que emanam de sua personagem.
Todas essas questões tornam o filme excepcional no que busca transmitir e representar. A força, dores, papel e liberdade femininas são testadas, questionadas e abordadas em diversos aspectos do longa. Bem desenvolvidas, ou nem tanto, como no caso da história da mãe de Susie.
Somados, esses aspectos tornam Suspiria uma experiência inesquecível. O filme é capaz de penetrar na mente do telespectador, seja pelo choque, medo, irreverência ou reflexão. Ainda que siga os passos iniciais da obra original, esta caminha sozinha, tornando-se única e clássica. Assim, representando com beleza e brutalidade, dança e morte, o que é a figura feminina e a imagem da bruxa.