Gabrielli Natividade da Silva
Stranger Things já está consolidada como um dos maiores sucessos da Netflix há muito tempo. Sua primeira temporada foi ao ar em 2016 e, agora, a quarta parte da história segue mantendo a boa recepção do público e consegue angariar ainda mais fãs, mesmo que seu lançamento tenha sido postergado pela pandemia. Esse ano, a série recebeu 13 indicações ao Emmy, sendo as principais Melhor Série de Drama e Melhor Elenco de Série de Drama – as outras nomeações figuram categorias técnicas. Um ponto ficou claro nesta última leva de episódios, o de que a aura infantil e sonhadora se foi e as sombras rondam os moradores de Hawkins. Os irmãos Duffer começaram um jogo brutal, mas, em alguns momentos, nota-se que desistiram de suas melhores jogadas.
É aparente que a temática geral da série se tornou mais sombria, a começar pelo próprio plot apresentado neste ano. O tão amado grupo de amigos retorna à escola após os eventos catastróficos do último quatro de julho, desta vez, com uma perspectiva nova: o Ensino Médio. Lidando com problemas considerados normais para a adolescência, como novas amizades, busca de uma identidade e até mesmo bullying, foi realmente uma surpresa para eles que corpos desconfigurados passassem a ser encontrados pela cidade, ainda mais quando uma das integrantes do bando poderia ser a próxima vítima. Essa narrativa se relaciona com o terror dos anos 1980, o que faz sentido e é muito interessante para quem consegue identificar referências nítidas no roteiro, com o principal exemplo sendo a inegável semelhança entre Vecna (Jaime Campbell Bower) e Freddie Krueger (Robert Englund até mesmo fazendo uma participação rápida na temporada).
Toda a mudança de tom da produção leva a uma dúvida importante: Stranger Things perdeu sua coerência? A resposta não é certa. Ross e Matt Duffer se esforçaram para que todo o conteúdo se mantivesse interligado, mas não é difícil perceber que a série está quase irreconhecível. A linguagem macabra é, na verdade, muito bem-vinda. Porém, seria mais atrativo que os criadores dessem o próximo passo, já que eles não tem pena alguma de matar sem mais nem menos personagens secundários (e têm a fama de adicionarem-nos apenas para isso), contudo nunca tiveram coragem de tirar de cena um dos protagonistas. Will (Noah Schnapp), Hopper (David Harbour) e, agora, Max (Sadie Sink) chegaram perto, mas tiveram suas vidas salvas no último minuto, quebrando a expectativa do espectador e o deixando tranquilo quanto a uma possível grande morte – o que não é bom. Ver a morte da ruiva, por exemplo, teria sido mais intrigante do que assistí-la quebrada e cega em uma cama de hospital.
Quanto a adição dos personagens novos, pode-se dizer que houve alguns acertos e muitos erros. Chrissy (Grace Van Dien) foi um raio de luz e conquistou o público rapidamente com seu jeito simpático, mas, infelizmente, sua presença não durou nem dois episódios. Pelo menos sua participação foi imortalizada com os vários remixes de Chrissy, Wake Up. Seu namorado Jason (Mason Dye), por outro lado, foi mantido até o último momento, mesmo que fosse inconveniente e minimamente carismático. A adição mais injusta foi a de Vickie: todo o talento incontestável de Amybeth McNulty acabou desperdiçado, uma vez que a personagem foi resumida a um interesse romântico e apareceu em pouquíssimos segundos de tela. Argyle (Eduardo Franco) teve uma trajetória parecida com a da paixão de Robin, tratado como um simples alívio cômico e tendo utilidade em alguns raros momentos.
Eddie Munson, por outro lado, foi um sopro de ar fresco em meio ao caos da quarta temporada de Stranger Things. Joseph Quinn foi capaz de impor sua forte presença no minuto em que apareceu, mantendo-na até seu último suspiro. Com uma personalidade impossível de desgostar e uma coleção de momentos icônicos, o jovem adulto repetente trouxe uma química surreal com uma grande quantidade de personagens, especialmente com Dustin (Gaten Matarazzo), característica até então atribuída apenas para o ex bad boy Steve Harrington (Joe Keery). Eddie foi o típico jovem deslocado, a quem nunca foi dada uma oportunidade real de mostrar sua verdadeira face, e, mesmo que as teorias apontem que o metaleiro mais amado da Netflix ainda está vivo e no mundo invertido, as injustiças lhe ocorreram até mesmo depois de sua morte.
O protagonismo neste quarto ano ficou por conta de Max e Eleven (Millie Bobby Brown). Mesmo que a súbita falta de poderes da última a tenha colocado em segundo plano, o resto da trupe foi obrigado a lidar com os problemas sem se apoiar em sua super-heroína. As duas personagens são próximas desde a temporada anterior e o fato de Max ser a última vítima de Vecna fez com que a ligação entre elas se estreitasse ainda mais. Eleven estava desesperada para retomar suas habilidades e salvar sua melhor amiga, assim como, mesmo se afogando em desespero, Max foi capaz de se acalmar com a proteção de sua aliada, até mesmo tentando ajudá-la no meio de um embate de gigantes.
Mesmo que a volta de Max não seja tão interessante de se assistir, é emocionante notar que a personagem de Millie preza tanto pela garota que foi capaz de ressuscitá-la. Para a surpresa de muitos, nenhuma das atrizes foi indicada ao Emmy esse ano. A exclusão de Sadie foi a mais chocante, já que, após a sua performance no episódio Dear Billy, parecia óbvio que a jovem seria indicada ao prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante em Drama.
Um fato curioso e, nesta altura do campeonato, um pouco incômodo, é o fato de que Eleven ainda não descobriu sua própria identidade, sempre se adaptando ao meio em que está inserida. Na primeira temporada, ela era influenciada por Brenner (Matthew Modine) e Mike (Finn Wolfhard), e na segunda, por Hopper e Kali (Linnea Berthelsen). Já na terceira, era Max quem desempenhava esse papel e, na quarta, Joyce (Winona Ryder) e Brenner novamente. De certa forma, faz sentido que a garota não saiba quem é por ter tido sua infância roubada de si, mas após quatro anos era de se esperar que houvesse um progresso em seu processo de descoberta, e não é o que aparenta.
No início da trama dessa temporada, Eleven trava uma grande discussão com Mike, por sentir que não se encaixa em lugar algum e, pouco depois, demonstrou que seu antigo ‘papa’ ainda demonstrava muito poder sobre ela. Com o cientista morto e a jovem tendo descoberto a origem de seus problemas e seus novos poderes, aguarda-se que ela finalmente deixe desabrochar sua personalidade. Porém, tendo perdido uma batalha para Vecna, o futuro ainda é imprevisível.
Já ficou claro que houve muita quebra de expectativa na mais recente temporada de Stranger Things, mas a maior delas envolve Mike e Will. Wheeler estava acostumado a ser o líder do grupo desde o primeiro ano da série, porém seu brilho foi ofuscado e ele foi rebaixado ao posto de namorado bobinho de Eleven e interesse romântico de Will. Byers, por sua vez, tem sido cada vez menos aproveitado: sua ligação intensa com o mundo invertido praticamente não foi abordada no novo plot e, com certeza, quase todo o público se sentiu enganado pela Netflix ter optado por prolongar o queerbating mais um pouco. Os sinais de que Will se assumiria gay e apaixonado por um de seus melhores amigos eram óbvios para muitos, mas, por algum motivo incompreensível, o último passo não foi dado. Só resta esperar que esses personagens tão importantes sejam melhor explorados na próxima trama.
Um fator que passou longe de decepcionar no novo ano de Stranger Things foi, definitivamente, a trilha sonora. A inserção de Eddie na série realmente foi benéfica nesse sentido, já que o garoto agraciou a todos com referências ao rock e o metal dos anos 1980, além de trazer um dos melhores momentos da temporada: o solo de Master of Puppets, que faz todo o sentido com a narrativa. Mas a cereja do bolo é, sem surpresas, a música Running up That Hill. A faixa ficou na cabeça de todos por ter sido tocada tantas vezes, fazendo com que o espectador realmente se sentisse como a Max, agarrando-se à voz segura de Kate Bush nos momentos de alerta. A cantora obteve resultados muito positivos com a série, uma vez que a sua canção se popularizou novamente décadas depois de seu lançamento, alcançando até mesmo posições altas na Billboard Hot 100. É o que dizem, não dá para se competir com os clássicos.
A última temporada da produção não é o que os fãs estavam esperando, mas todo o caos trouxe uma adrenalina necessária para quem lida com rotinas monótonas. Porém, o final deixa a desejar e quebra o ritmo frenético criado nos oito episódios. O erro começa com a divisão dos capítulos: desde o anúncio do quarto ano, foi divulgado que o lançamento seria feito em duas partes, no entanto, a segunda ‘metade’ era apenas dois episódios muito longos, diferente do formato comum das produções que recorrem a esse recurso. O fim quebra o clima de vez, já que, após altas emoções, só o que se vê é uma tela preta informando que dois dias haviam se passado e, em seguida, todos praticamente agem como se nada tivesse acontecido.
Entre altos e baixos, a produção tem um longo histórico de participação no Oscar da TV, acumulando 51 indicações e 7 vitórias. Assim como neste ano, a maior parte do reconhecimento da série vai para as categorias técnicas, em especial as relacionadas à edição de som – Stranger Things já recebeu três estatuetas pelo seu desempenho nessa área e concorre a mais duas em 2022, Melhor Edição de Som em Série de Comédia ou Drama (Uma Hora) e Melhor Mixagem de Som em Série de Comédia ou Drama (Uma Hora), ambas pelo sétimo episódio, Dear Billy. Quanto às principais categorias da noite, o título compete pela estatueta de Melhor Série de Drama pela quarta vez, porém nunca conseguiu levá-la para casa; para Melhor Elenco de Série de Drama, Stranger Things já está em sua terceira indicação, vencendo somente em seu segundo ano no evento, em 2017. Com o sucesso estrondoso da última temporada, pode ser que mais alguns prêmios entrem para a coleção.
Dentre os episódios dessa leva, o Querido Billy e O massacre no laboratório de Hawkins se destacaram no Emmy 2022, concorrendo a quatro categorias cada, e o final da série simplesmente não faz jus a isso. Carregando momentos inesquecíveis e outros que é melhor apagar da memória, Stranger Things já está confirmada para uma quinta e última temporada, e espera-se que os Duffer tenham a coragem de tirar seu público do escuro e entregar as melhores cartas no fim do jogo.