Raquel Dutra
Ela já foi muitas pessoas em muitas narrativas diferentes: Princesa Diana de Gales para a burocracia da realeza inglesa, Alteza Real para os súditos do sistema monárquico europeu, e Lady Di para a legião de admiradores fiéis de uma das figuras mais relevantes do século 20. Mas entre todas as suas identidades criadas, exploradas e eternizadas entre 1 de julho de 1961 e 31 de agosto de 1997, a que foi responsável pelo início de tudo ainda era olvidada – até setembro de 2021, quando na 78ª edição do Festival de Cinema de Veneza, o diretor Pablo Larraín fez surgir pela primeira vez a única face que ainda lhe era particular. Então, agora ela é Spencer.
Para alcançar as origens do fenômeno da plebeia que se transformou em uma das figuras mais marcantes da família real britânica, o cineasta chileno invoca toda a individualidade expressa pela definição de identidade apagada da história de Diana Frances Spencer. Assim, cada canto da cinebiografia existe sob uma premissa exclusiva: é dezembro de 1991, e Rainha Elizabeth II e companhia estão se reunindo em Sandringham House para as celebrações familiares de Natal. Os conflitos de relacionamento do círculo principal da Coroa já estão avançados, e Diana cumpre suas obrigações para com a realeza completamente contra a sua vontade. Mas aquele é especialmente incômodo porque, no meio de seus desvios de caminho que atrasam propositalmente seu encontro com a família, ela se vê apenas a alguns quilômetros de distância do lugar onde viveu sua infância.
Essa é a forma que Spencer encontra para definir e iniciar a história de conflitos que deseja contar. Não existe glamour de princesa e nem poder de personalidade influente. Aqui, Diana apenas sente o ar de sua falecida vida ordinária num cenário insuportavelmente próximo daquele que ocupa o seu rejeitado cotidiano extraordinário. Em um período curto e delimitado de um drama real – sem trocadilhos – que virou um conto de conhecimento quase geral, o filme engatilha uma jornada intensa, numa ótica que observa a sua protagonista já emocionalmente fragilizada indo em direção a um de seus maiores desafios: a mera sobrevivência em um ambiente que lhe adoece estando também muito próxima do que representa a sua cura.
Mas a introdução narrativa abstrata e contextual do filme não é a única forma que ele encontra para inteligentemente manifestar a sua ideia central. Aos primeiros minutos de Spencer, o texto de Steven Knight não se preocupa com a obviedade de apresentar Diana ou qualquer rastro de realeza que vai compor a tela durante os 117 minutos seguintes. Na verdade, a abertura mostra um comboio militar que está chegando à residência real. Soldados descem ordenadamente dos veículos carregando robustas caixas lacradas até um cômodo da casa. A câmera observa um conselho impresso nas paredes (“mantenha o mínimo barulho, eles podem te ouvir”), e quando o espectador está prestes a se convencer de que está no filme errado, o pelotão baixa a guarda e o conteúdo transportado com extrema disciplina até ali é revelado: as comidas mais caras que uma cozinha mundana pode abrigar.
Não, a sequência inicial não mostra um protocolo de guerra, apenas a preparação do Natal da família real. Assim, Spencer termina de apresentar a sua ótica narrativa: aos olhos de Diana, viver como parte da realeza britânica é travar um conflito armado com o exército mais poderoso que poderia ter como inimigo e resistir no território mais hostil que poderia existir naquele contexto privilegiado. Logo, personagens definidos por seus títulos e posições preenchem o ambiente tendo a regência da Rainha como referencial, numa alusão crítica da dinâmica da Coroa que mais parece um clichê fílmico do gênero de guerra. E o desempenho de Diana, apesar de não atender às expectativas dos veteranos e definir-se à sua maneira, é a própria definição de “sentido!”.
Desta forma, mais uma afirmação do início se confirma: não é mero gracejo textual quando o diretor introduz seu filme como “uma fábula de uma tragédia verdadeira”. Esqueça a identidade classuda de The Crown, pois Spencer entende a seriedade de sua narrativa, mas consegue brincar com seus caminhos sem se perder por eles, com a atitude certeira de defini-los muito bem modulando maniqueísmos. O caráter criticamente estético do filme cria um tom caricato para a história, emocionalmente densa, que ao contrário do que pode parecer, harmoniza perfeitamente com a extravagância dramática característica de Pablo Larraín.
Como toda boa direção, a de Spencer consegue colocar todos os seus personagens na mesma atmosfera. E como todo bom comandante, Larraín extrai o máximo de sua equipe mesmo em território controlado e de curta permanência. Enquanto a Rainha Elizabeth II (Stella Gonet, de The House of Eliott) ocupa a posição tática mais importante, o Príncipe Charles de Jack Farthing (A Filha Perdida) é o negociador diplomático. E se por um lado o chef Darren (Sean Harris, de Southcliffe) é a liderança compassiva que alivia as tensões com uma gentileza ainda firme, o major Alistair Gregory (Timothy Spall, de Encantada e Mr. Turner) é quem mantém (ou pelo menos tenta) tudo em ordem com seu senso de dever inflexivelmente comprometido.
Com maior destaque de tela do que seus companheiros coadjuvantes, no entanto, a personagem que tenta colocar Diana na linha é também o maior responsável pela manutenção daquele tom comedidamente cômico do filme. Com o difícil trabalho de se equilibrar entre as duas principais características da obra de Pablo Larraín, Timothy Spall, com a sua filmografia carismática embaixo de um braço e seu histórico de veterano em Cannes embaixo do outro, cumpre perfeitamente a missão do Comandante de Spencer.
A estratégia de Spencer é arquitetada para aprofundar e intensificar a narrativa de uma direção que sabe investigar personagens históricas intimamente. Apreciada para o prêmio máximo de Veneza no ano passado, ela já é familiar graças a Jackie (2016), obra que também encontrou prestígio da crítica e do público ao retratar uma Jacqueline Kennedy despida do apelo midiático de uma das primeiras-damas mais queridas dos Estados Unidos em sua viuvez. Na época, o protagonismo brilhante de Natalie Portman direcionado por Pablo Larraín a levou até as indicadas ao Oscar de Melhor Atriz em 2017, trabalho bem-sucedido que repete seus efeitos com a genialidade de Kristen Stewart na personagem da vez em 2022.
O motivo do triunfo da atriz é tão misteriosamente óbvio quanto o encanto de sua personagem em vida. Para criar um dos momentos mais angustiantes de Diana, apenas a especialidade de Kristen com a tristeza. E os convidados a apreciar o trabalho são apenas os que não assumiram os preconceitos com o nome principal da melancolia juvenil de Crepúsculo, que quase 15 anos depois, alcança sua primeira indicação ao prêmio da Academia ao lado das veteranas Olivia Colman, Jessica Chastain, Penélope Cruz e Nicole Kidman. A nomeação é mais que devida: na delicadeza de Spencer, Stewart demonstra sua maturidade interpretativa e entrega a melhor atuação de sua carreira.
Ela é minuciosamente vasta, observando com atenção os delicados trejeitos de Diana, como as falas sussurradas, o olhar baixo e a linguagem corporal de uma bailarina retraída, e compreendendo também suas características mais amadas e midiáticas, como a sua sinceridade emocional que confrontava a frieza e distância da imagem pública da família real. Trêmula em sua identidade assim como sua personagem, ela também se entrega nos comportamentos que denunciam o colapso emocional da Princesa, em suas caminhadas pela madrugada fria, devaneios monológicos com animais, roupas e móveis. Assim, ela chega ao seu ponto crítico, desenvolvendo os sinais que antecedem a manifestação dos problemas de Diana, como a bulimia e automutilação, mas não deixa a seriedade sufocar as quimeras reflexivas e imaginativas que confundem o espectador de Spencer.
A humanidade de Kristen para com sua Diana contorna até mesmo as possíveis armadilhas narrativas de Spencer. A primeira, no entanto, é mais externa, já que quem conhece a história apenas através do recorte temporal de Pablo Larraín é privado de tudo o que levou a personagem até ali, podendo até acreditar que a trama do filme trata de uma mulher crescida meramente arrependida do que escolheu para a própria vida. Já a segunda é facilmente superada pela espontaneidade e leveza de Stewart, que adicionam à densidade emocional da história uma nova camada de vida, solucionando, também, a tendência à incompreensão da protagonista.
E os últimos anos de Diana pelo mundo não foram só de tristezas, também lembra muito bem o roteiro de Spencer e o alcance de Kristen. Dos momentos mais obscuros aos mais vibrantes, a presença magnética de Lady Di, impossível de ser totalmente reproduzida, é a inspiração maior da interpretação de Stewart, da escrita de Knight e da direção de Larraín. A protagonista do filme era “é classe média demais” para os padrões da monarquia, mas se preocupa sobre o que vão escrever sobre sua vida dentro de mil anos. Ela exerce um poder tremendo em seus filhos, os preciosos herdeiros do trono, William (Jack Nielen) e Harry (Freddie Spry), mas também é ternamente influenciada por eles e pela sua maternidade transgressora. E quando manifesta esse conflito interno, ela explode silenciosamente em desafios aos padrões reais, como uma guerreira na linha de frente de um conflito onde não tem nada a perder.
Por fim, o toque final na construção da humanidade de Diana é a suave porém poderosa passagem de Maggie, a criada interpretada por Sally Hawkins (divina protagonista do vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2018, A Forma da Água). A personagem é como uma âncora para a tribulação emocional de Diana, e sem muitas explicações sobre como chegou a exercer tal papel na vida da Princesa, Spencer triunfa com mais uma interpretação coadjuvante muito bem localizada na narrativa. A ela, Larraín e Knight dedicam muita leveza para a construção da relação quase romântica de Maggie e Diana, que é, acima de tudo, de tremendo companheirismo e profunda identificação.
É por isso que, mais uma vez ao contrário do que pode parecer, Spencer é um filme contemplativo, muito bem resolvido como tal na cinematografia de Claire Mathon, que captura a produção de Guy Hendrix Dyas. O gosto de realismo mágico habita perfeitamente as câmeras da francesa, responsável por criar a mesma identidade no magistral Retrato de uma Jovem em Chamas, pelo qual foi premiada com o César de Melhor Fotografia de 2020, e que, mais uma vez, faz falta dentre as indicações da categoria no Oscar. Do longa de Céline Sciamma, que também procura por acalanto um ambiente religiosamente frio, ela traz as imagens diurnas amareladas e as noturnas esmaecidas, registradas pela sua habilidade de enquadrar as personagens.
A singularidade de Spencer, no entanto, está numa espécie de diluição de cores, quase sempre pastéis, como forma de ilustrar o apagamento da vida da personagem principal. Já nas vestimentas de Jacqueline Durran, que também ficariam bem dentre as nomeações da vez ao prêmio da Academia, seguem os sucessos que a figurinista realizou em Adoráveis Mulheres, Anna Karenina, Orgulho & Preconceito e, mais recentemente, Cyrano e The Batman, para agora incorporar a paixão de Diana pela moda e complementar a direção artística de Maren Schal, Ralf Schreck e Stefan Speth.
O complemento para o visual de Mathon é a música de Jonny Greenwood. Na primeira de suas três trilhas sonoras para alguns dos melhores filmes do ano, o guitarrista do Radiohead mistura elementos da música clássica, country, rock, jazz e pop, como forma de reproduzir a sensação confusa de Diana naquele contexto antiquado em plena efervescência cultural do final do século (vide as canções Ancient and Modern e Delusion / Miracle).
Os violinos e órgãos acabam como os instrumentos favoritos do músico, com destaque para os momentos em que o filme beira um suspense psicológico dos anos 60, à medida que se entrega ao emocional perturbado da protagonista. Dentre seu trabalho em Spencer, Licorice Pizza e Ataque dos Cães, ele foi impulsionado na premiação da Academia pelo prestígio de Jane Campion e concorre com Hans Zimmer, Alberto Iglesias, Nicholas Britell e a primeira mulher latino-americana indicada à categoria, Germaine Franco.
Todos os elementos de Spencer graciosamente estão em guerra. Desde sua definição, apresentada como uma cinebiografia que se manifesta mais como um drama biográfico, até a construção mais ampla de sua história, que se ocupa em ficcionalizar uma realidade ao invés de perseguir o real para compor a sua ficção, o filme de Pablo Larraín usa todos os seus artifícios e mágicas para vencer uma batalha em busca da maior necessidade de sua protagonista: identidade e amor.
E como Diana bem sabia, essa combinação de elementos jamais seria encontrada no território adversário, que sequer tem um conflito de verdade para lutar e um ideal louvável a se defender em sua plena insignificância diante da modernidade. Mas através da obra, a batalha da Princesa que se entregou a uma luta por si mesma é findada e vitoriosa a partir do que ela essencialmente já tem: a pessoa existente por trás de Diana é, finalmente, completa, única e independente. Agora, ela pode ser Spencer.