Ana Júlia Trevisan
Estamos cada dia mais imersos nas Olimpíadas de Tóquio. A última vez que assistimos aos jogos, eles aconteciam em solo brasileiro, na Cidade Maravilhosa. Um dos grandes destaques do Rio 2016 foi a ginasta Simone Biles, que conquistou quatro medalhas de ouro, batendo recordes. Em 2018, ela revelou ter ser uma das mais de 100 vítimas de abuso sexual cometido pelo ex-médico da Federação de Ginástica dos Estados Unidos, Larry Nassar. É nesse pavoroso mundo onde a realidade se torna o pior pesadelo que é ambientando Slalom – Até o Limite.
Terceiro filme a ser exibido no Festival do Rio 2021, o longa integrou a Seleção Oficial do Festival de Cannes 2020, e marca com dor e talento a estreia da roteirista e diretora francesa Charlène Favier. A história da promissora esquiadora que sonha em chegar com seu esporte às Olimpíadas é, em partes, inspirada na própria biografia de sua criadora, que molda a garota com suas experiências pessoais. A atuação de Noée Abita merece, também, todo o destaque, pela coragem e força em encarnar essa personagem e defender seus anseios.
A jovem Lyz, de apenas 15 anos, é uma menina prodígio no esqui, treinada por um ex-talento do esporte, Fred, que se viu obrigado a parar de competir após uma lesão. O treinador julga a garota de estar defasada em relação ao grupo e dá atenção especial a ela por acreditar em seu potencial. Logo no começo, Slalom já incomoda. As cenas nauseantes se tornam duras de assistir pois o instinto – ou melhor, o medo – feminino faz reconhecer em qual momento os atos do treinador deixam de ser apenas seu trabalho e passam a integrar uma sucessão de dominação e controle psicológico.
Não há maneira sutil para retratar a violência de um abuso sexual. O roteiro bem construído e apoiado em sua densa dramaticidade nos coloca como telespectadores de uma cadeia de abusos psicológicos. É angustiante todo o início do filme, até entendermos onde a trama vai nos levar. Logo conhecemos Lyz como uma menina solitária, cuja mãe deixou-a sozinha em casa para trabalhar em outra cidade. Os reflexos dessa ausência são marcas assustadoras para compreensão do enredo – a todo momento queremos salvar a garota dos perigos que a rodeiam de maneira gritante, perigos esses não notados por ela.
A menina está sozinha na cidade por conta de suas aulas de esqui, e tem em seu treinador uma figura próxima e que acredita nela. A cabeça conturbada de Lyz o vê como alguém confiável, que investe nela, o primeiro que se interessa e não a deixa desistir dos próprios sonhos, que a acolhe quando está sozinha. Fred (Jérémie Renier), extremamente grosso com Lyz na frente da equipe, adota uma intragável postura mais acolhedora quando ela está sozinha.
O treinador que exige mais de Lyz do que dos outros alunos por confiança. É essa a ideia que a garota tem. Mas o ambiente do longa não nos permite sermos enganados. Não é como se ele fosse bonzinho desde o começo, as cenas são duras e degradantes, as cores trazem um ar obscuro para a mente doentia de Fred. O típico dos filmes de drama esportivo, a crença na superação, revela seu amargo caráter sombrio.
Charlène Favier acerta na medida de cada cena. Usando de um ritmo lento, não somos previamente introduzidos aos personagens. O filme foca mais em partes adicionais do que em plots que entregam de cara o desenvolvimento e as respostas para todas as perguntas. É essa construção que nos coloca em um ambiente comum, escancarando cada vez mais como esses atos cruéis beiram a normalidade em nossa sociedade. Entendemos a mente daquela criança que se vê presa a seu abusador.
As cenas explícitas embrulham o estômago. Todo o segmento do vestiário é necessariamente revoltante – e desconfie do caráter de quem se sentiu indiferente nos eternos segundos de cena. É incômodo vermos uma criança de 15 anos buscando refúgio nas drogas por não confiar na única pessoa que ela tem por perto. É perturbador ver Lyz vulnerável e tendo apenas a companhia de seu treinador. A sequência de cenas reverbera de forma desesperadora, a câmera fechada nas expressões faciais nos deixa a par da dor daquela garota que ainda é uma criança.
O filme segue sua dura realidade até o segundo final, não trazendo respostas ou soluções. A relação de poder exercido sobre a vida e carreira da vítima constrói a violenta dinâmica de dominação, que é o ponto explicativo para o medo da denúncia. É por conta dessa ‘autoridade’ que Joanna Maranhão só conseguiu trazer o assunto a público aos 21 anos. É também no final que o cuidado e a proteção à criança e ao adolescente ecoam sua importância. Ancorada na certeza da presença da mãe, Lyz consegue dizer seu primeiro “não”.
Slalom – Até o Limite é feito para incomodar e trazer angústia, abrir o olhar do espectador para um assunto tão sério, que beira o comum mas jamais deveria ser normalizado. Não há nada de normal ou inocente em uma menina ficar sozinha com seu treinador em um cômodo, não há nada de normal em um homem cis falando quão lindo o ‘sagrado femino’ parece ser. E nunca, NUNCA!, vai haver algo de normal em um homem tocando nosso corpo sem consentimento. Violência sexual é crime e infelizmente acontece de muitas formas além de uma relação com penetração. Denuncie!