Ayra Mori
1931, dentro de um internato, se deu o primeiro beijo lésbico reconhecido pela história da Sétima Arte. O título é honra, não dos tímidos beijos trocados por um casal de mulheres arlequinamente dançantes em Le départ d’Arlequin et de Pierrette (1900), da pioneira mãe do Cinema, Alice Guy-Blaché, ou do sex appeal de um beijo sáfico roubado por uma Marlene Dietrich andrógina em Marrocos (1930), mas sim, por direito, de Senhoritas em Uniforme (1931). Marco do audiovisual LGBTQIA+, a produção alemã determinou os destinos da ficção queer ao longo de seus 90 anos, revelando com sensibilidade o florescer do desejo lésbico. E realizado por uma equipe de mulheres, na desobediência, é alcançada a libertação.
Do roteiro à execução, a perspectiva do filme é inteiramente feminina. Baseado na peça teatral Gestern und Heute (1930), escrita por Christa Winsloe – ex-Baronesa assumidamente lésbica –, a história relata a experiência pessoal da dramaturga ao viver sobre a austeridade de um colégio interno em Postdam, ainda na adolescência. O sucesso da trama levou à adaptação de Leontine Sagan no ano seguinte e outra em 1958, uma refilmagem quase idêntica da original, dirigida por Géza von Radványi. Em ambos, o elenco é todo composto por mulheres. A única presença masculina se manifesta simbolicamente através da imobilidade dos heróis de guerra imortalizados no mármore das esculturas que cercam a arquitetura sóbria do internato.
Nos primeiros minutos do filme, somos introduzidos à protagonista. Ela é Manuela (Hertha Thiele), uma adolescente de 14 anos, enviada de malgrado para um internato destinado somente à moças. Praticamente órfã, ela perdeu precocemente a mãe, enquanto o pai, como um “bom” soldado prussiano, ausenta-se do papel de educar a filha. Uma menina especialmente sensível, Manuela se depara de imediato com o autoritarismo da diretora Fräulein von Nordeck zur Nidden (Emilia Unda). Por consequência, entra em conflito a irreverência da aliança fraterna entre as colegiais contra a tirania da instituição patriarcal representada pelas professoras. Bom, nem toda professora.
— Cuidado para não se apaixonar.
— Por quê?
— Porque todas as garotas têm uma queda pela Srta. Fräulein von Bernburg.
Foi o conselho oferecido à recém-chegada pelas novas colegas, não como um aviso moral, mas como um subtexto brincalhão, mandando-a entrar na longa fila de admiradoras. Atravessando as paredes frias dos dormitórios compartilhados, dos vestiários confessionais ou, ainda, das cortinas que separam cada cabine do banheiro, a admiração pela professora Fräulein von Bernburg (Dorothea Wieck) é consenso entre as garotas – e com Manuela, não foi diferente. A professora é culta, elegante e incrivelmente bela. Diferente das matriarcas mais tradicionais, Fräulein von Bernburg é compreensiva, valorizando o afeto no aprendizado, tanto quanto na disciplina. Não há como não se encantar por uma mulher tão fascinante quanto ela.
As garotas adoram Fräulein von Bernburg, dançam juntas, bordam dentro de um coração as iniciais de seus nomes combinados com a da professora e confessam naturalmente a paixão pela mulher mais velha. O queerness é normalizado, abrindo-se as portas de um universo íntimo emancipado das amarras compulsórias da sociedade heterossexual, celebrando o amor em suas muitas formas – maternal (Fräulein von Bernburg), fraternal (Ilse) ou, mesmo, homossexual (Manuela). O erotismo lésbico se apresenta com inocência, não como algo sujo. E Manuela fica completamente hipnotizada pela professora.
Na cena mais memorável do filme, uma fileira de colegiais em camisolas brancas, esperam ansiosamente o beijo de boa noite de Fräulein von Bernburg. A professora caminha de cama em cama, beijando testa por testa como num eros ritualístico. A última é Manuela, que espera ansiosamente pela sua vez, observando a professora cruzar, sem pressa, o dormitório. Seguida por close-ups de olhares cheios de desejo, a antecipação é inquietante. Cresce em Manuela um sentimento inebriante, confundindo, despertando. Quando chega a sua vez, ela abraça a mulher mais velha, quase implorando por um beijo nos lábios, que lhe é concedido.
— Quando você diz boa noite e fecha a porta do quarto, encaro-a na escuridão. Eu quero me levantar e ir até você, mas sei que não posso. Penso que quando eu sair da escola, você ainda estará aqui. E toda noite, você beijará novas garotas.
Apesar do clima propício para explorar questões de gênero e sexualidade na Alemanha, que se tornou uma espécie de meca LGBTQIA+ nas décadas anteriores, Senhoritas em Uniforme foi feito no auge da decadência progressista de Weimar. Avançava o ativismo queer no país, graças à Liga Mundial pela Reforma Sexual do sexólogo gay Magnus Hirschfeld e, acredite se quiser, havia mais de cinquenta bares lésbicos (Damenklub) somente em Berlim. Ninguém diria que em dois anos tudo mudaria.
As únicas três produções dirigidas por Sagan davam sinais de um movimento nascente que transcendia a dramaticidade do expressionismo alemão, como em O Gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene. O claro-escuro não buscava mais acentuar as distorções psicológicas de um personagem masculino perturbado, pelo contrário, a cineasta sutilmente combinava elementos estilísticos expressionistas com a performance orgânica de suas atrizes, evocando a subjetividade da psique feminina. O preto se ilumina, o branco cintila. Sobre a tela prateada as emoções se derramam calorosamente entre os encontros de olhares perdidos.
Nos detalhes, a direção de Sagan se excede. Cada toque, cada carícia, cada vislumbre são enquadrados por uma soberba câmera que irradia deslumbrantemente o rosto das adolescentes. Os retratos são sutis, simplistas, cândidos e angelicalmente lindos. Romântico em sua narrativa, em sua forma, Senhoritas em Uniforme enfatiza o indizível acima do dito. A expressividade do olhar de uma Manuela desolada é suficiente para compreender todas as dores da garota, carregando consigo as reminiscências das agonias dilacerantes de uma Joana d’Arc (Renée Jeanne Falconetti) em julgamento, no clássico A Paixão de Joana d’Arc (1928).
Infelizmente, com a tomada do poder pelo partido nazista, esse brilho se apagou quando a propaganda militar assumiu o controle da produção cultural alemã. Fato é que dentro do fascismo, não há espaço para a expansão do eu. O individualismo de Sagan foi comprimido na vida e na Arte. Além de ter sido proibido nos Estados Unidos perante o Código Hays – a censura foi retirada somente devido à moções conduzidas por uma influente aliada, a primeira dama Eleanor Roosevelt –, Senhoritas em Uniforme foi visto como perigo pelo então ministro da Cultura, Joseph Goebbels, que ordenou que todas as cópias do filme fossem queimadas. Mas, por sorte, uma das cópias existentes fora da Alemanha sobreviveu, junto com o legado de Sagan.
Inevitavelmente, o filme carrega em suas veias um evidente caráter político. Era uma Europa entreguerras, devastada pela fome e ameaçada pelo nascente partido nazista. A despótica diretora Fräulein von Nordeck zur Nidden é a personificação de toda a perversidade do regime autoritário de Hitler. “Nós, prussianos, conhecemos a fome. Elas são filhas de soldados e, se Deus quiser, mães de soldados”, declara a superiora, que sujeita as garotas à privação intencional de comida. Para ela, o sofrimento as dignifica, como verdadeiras mulheres de Atenas, instruídas aos bons costumes da Prússia, ao casamento e à fé.
Contudo, embora seja uma obstinada declaração antifacista, no âmago de Senhoritas em Uniforme, afirma-se, antes de mais nada, uma história de amadurecimento. Sagan emparelha a consciência sociopolítica de seu tempo à representação hormonal dos primeiros amores, refletindo na narrativa uma experiência universal sob a especificidade de uma lente homoerótica. Os corpos se maturam e, por trás das cortinas do internato, desperta-se silenciosamente o desejo. Porém, uma vez que uma Manuela embriagada declara o seu amor para Fräulein von Bernburg, um limite é transgredido. Até que ponto a afeição homossocial entre as garotas era permitida?
— Você não deveria pensar nessas coisas, muito menos falar sobre. Você deve voltar aos seus sentidos. Você deve ser curada custe o que custar.
— Curada? Sobre o quê?
— Você não deveria me amar… tanto.
— Por que não?
Os sentimentos, ora naturalizados pelo companheirismo sáfico das colegas, só eram aceitáveis devido à falta de meninos – não deviam significar nada além disso. Assim, firma-se um contrato taciturno que restringe essas afeições homoeróticas a um determinado estágio da juventude daquelas adolescentes que, com o tempo, sentiriam-se compelidas a se entender como heterossexuais. O filme se encerra com a certeza do amor de Manuela que entende, com medo, a influência de seus sentimentos sobre o futuro, enxergando, na morte, a única saída. Mas é na aliança que o último ato se finda.
Rebelando-se contra a tirania de Fräulein von Nordeck zur Nidden, as colegas se unem em solidariedade à Manuela. Proibidas, elas marcham juntas pelos corredores do internato em desobediência ao regime opressivo da superiora. Aqui, o poder é delas, o poder é do povo. Elas salvam a vida de Manuela ao passo que reivindicam a própria autonomia, encontrando a si mesmas apesar das estruturas repressivas. Em todo o seu potencial revolucionário, Senhoritas em Uniforme é um hino aos primeiros amores. Aqueles que ainda não estamos preparados para entender, para aceitar, mas que resistem, ainda que no limite de uma memória já desbotada.