Jho Brunhara
É difícil diretores jovens escaparem de realizar pelo menos um projeto do gênero coming-of-age, o famoso longa de amadurecimento, e Faraz Shariat não foge à regra. O diretor de 26 anos traz para Sem Ressentimentos uma semi-biografia, mas também questões muito maiores sobre a configuração política do mundo que conhecemos. O longa alemão, selecionado para a 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, faz parte da Competição Novos Diretores.
A história de Futur Drei, título no idioma original, segue o jovem gay Parvis Joon (Benjamin Radjaipour), filho de iranianos que moram na Alemanha há alguns anos. Após um pequeno crime, o garoto precisa prestar serviço comunitário em um centro de refugiados na Saxônia, e é lá onde conhece Amon (Eidin Jalali), que fugiu do Irã junto de sua irmã, Banafshe (Banafshe Hourmazdi).
O primeiro take do filme dá o tom da obra: uma gravação VHS do próprio Faraz, quando criança, usando uma fantasia da personagem Sailor Moon. A proporção 4:3 do videocassete continua até o fim, enquanto vemos de perto as vivências de Shariat se projetarem no caminho de Parvis. Aliás, os dois até dividem a mesma família: para o longa, Shariat utilizou seus próprios pais como os genitores de Joon. E esse é um dos pontos mais divisores em Sem Ressentimentos. Contra a corrente da maioria dos filmes LGBT+, os pais do jovem, mesmo sendo de um país que aplica a pena de morte para homossexuais, nunca vestem a homofobia.
A sexualidade, aqui, perpassa todos os debates repetitivos da maioria dos clichês gays. As personagens que não se aceitam, os pais que não sabem do segredo e são homofóbicos, o clímax do filme que é um simples beijo entre dois homens. São sim discussões importantíssimas, mas está na hora de outras histórias serem contadas, já temos suficientes filmes queer de trauma. E Faraz faz exatamente isso. Sem Ressentimentos desmantela a grande maioria dos coming-of-ages a là Netflix, e não deixa espaço para covardias ou receios. Até as cenas de sexo explícito não são gratuitas, são uma celebração da liberdade que elas têm de existir, do fato de vivermos em um mundo que, agora, elas podem ser feitas.
Mas afinal, de que mundo exatamente estamos falando? É essa a virada de chave do longa. Sem Ressentimentos logo abandona a imagem de filme de amadurecimento inofensivo: há muito o que ser dito. Como fazer um coming-of-age ‘bobo’, se antes existem tantos empecilhos para as suas personagens? O que seria de Lady Bird, se ela descobrisse do dia para a noite que seria deportada de volta para o Irã, onde não teria seus direitos básicos garantidos? Assim como faz Lovecraft Country (2020), o longa de Shariat escancara que é impossível contar essa história e ignorar a singularidade de seus personagens não-brancos e dilemas enfrentados.
A doença do nacionalismo não cega Faraz em nenhum momento. Enquanto o Ocidente demoniza apenas os países árabes, Sem Ressentimentos não esconde a hipocrisia da Alemanha. Desde a xenofobia vivida pelos imigrantes, a fetichização, e principalmente como as bordas políticas se preocupam em proteger apenas os seus. Não importa se o refugiado deportado pode ser morto em seu país de origem, o que acontece lá parece já não ser mais problema dos alemães.
Entre todas essas angústias, o alívio vem através do amor e da amizade. Seja a compreensão e a proximidade da família de Parvis, a paixão do garoto por Amon, ou o carinho entre Amon e Banafshe. E apesar de todos os dilemas da trama, o acento que mais se destaca é esse elo entre as personagens, que nasce dos pequenos momentos.
Faraz se debruça sobre o longa e permite que a fotografia colorida encontre o sentimento de ternura em suas criações, enquanto vemos suas questões internas e externas se manifestarem. E é impossível não se identificar com as expectativas e reflexões, mesmo com o recorte da história, aqui também são tratados temas universais, como identidade e pertencimento.
Sem Ressentimentos aborda duas liberdades: a de sermos e a de estarmos. Ambas completamente diferentes, mas diretamente conectadas. Como garantir um mundo que todas as crianças possam se fantasiar de Sailor Moon ou apenas sonhar com um futuro em que estejam vivas e seguras, sem medo? Já temos a resposta, mas ela é amarga para as tantas línguas. Enquanto isso, a arte sonha. Mas as fronteiras imaginárias ainda existem no mundo real.