Vitória Silva
Há 10 anos, Twenty One Pilots vem fazendo barulho ao redor do globo terrestre. Desde Regional at Best, o duo original de Columbus, Ohio, formado por Tyler Joseph e Josh Dun, luta constantemente para manter a unicidade de sua musicalidade, caracterizada por uma junção de elementos que vão desde o rap até o pop dançante. Característica essa inegociável para a banda, que fez questão de manter seus gritos estridentes mesmo após assinarem o contrato com a gravadora Fueled by Ramen.
Mas a identidade de Joseph e Dun vai muito além de se aventurar em diferentes estilos musicais, usar gorros na cabeça e moletons com desenho de esqueleto. Desde o lançamento do Blurryface – que, de fato, revelou Twenty One Pilots mundo afora – a dupla vem materializando a construção do seu próprio universo no meio musical. Muito mais do que apenas uma era, essa concepção contempla, agora, 3 álbuns completos, e contando.
Tyler é a grande fonte originadora de todas as letras dos discos, e sempre teve como teor principal abordar sobre questões que envolvam sua saúde mental e transtornos psicológicos. A partir disso, nasceu a persona do Blurryface, como forma de materializar todos os seus medos e inseguranças. “Meu nome é Blurryface e eu me importo com o que você pensa” é como ele decide se apresentar ao público na faixa Stressed Out, presente no álbum que carrega o mesmo nome do personagem.
Mais tarde, o duo ampliou a narrativa para o que seria a cidade de DEMA, uma espécie de local representativo da mente de Tyler, capaz de aprisioná-lo em seus próprios conflitos, representados por 9 bispos. Tyler e Josh seriam, então, dois insurgentes tentando fugir desse sistema, unidos aos rebeldes locais: os Banditos. E é nessa narrativa que o álbum Trench se constrói, sob uma sonoridade mais densa e representativa de toda essa revolução idealizada na mente do cantor. Com os toques melancólicos de Leave The City, a trajetória do disco acaba com Tyler sendo aprisionado pelos bispos.
Uma turnê mundial depois, um nascimento na família Joseph e o início de uma pandemia, surge o Scaled And Icy. O isolamento social com certeza foi um fator impulsionador para a mente criativa da dupla, que até teve como lançamento à parte a faixa Level of Concern, abordando o atual contexto que o mundo vem enfrentando. O que ninguém esperava era que a estética sombria e turbulenta até então característica de Twenty One Pilots daria origem a um universo colorido em tons pastéis, com dragões mágicos, arco-íris e todas as outras coisas fofinhas e nada associáveis aos dois esquisitões.
Como porta de entrada para esse “novo” mundo, somos bem recepcionados ao som de Good Day, que soa como a abertura de um programa matinal (e talvez essa seja exatamente a intenção). Numa jogada à la Pumped Up Kicks, a sonoridade alegre e otimista esconde o teor perturbador da letra que a acompanha. Em meio a um ukulele e um piano simpáticos, Tyler canta sobre uma situação hipotética de perder a sua esposa e filha, passando pela fase de negação do luto.
E não poderia haver uma forma melhor de introduzir o universo de Scaled And Icy se não com essa canção que é o puro suco do dualismo presente no álbum. O pop e as guitarras animadas que dominam as faixas não escondem a mensagem obscura que existe por trás dele, por mais que tentem. Retornando para a narrativa criada pela banda, SAI não passa de uma propaganda muito bem arquitetada por DEMA. Com Tyler aprisionado, o disco seria uma forma de manipulação para fingir normalidade, mascarada pela fantasia. Metaforicamente falando, uma autossabotagem do vocalista para fingir que está tudo bem, apesar de ainda aprisionado por seus demônios.
O videoclipe do primeiro single, Shy Away, evidencia essa nova realidade. Trazendo luz a um pop oitentista, a dupla está enclausurada em uma sala iluminada por luzes neon. Em paralelo, Tyler aparece em uma cidade sombria em ruínas, com o mesmo dragão azul da capa do disco a sobrevoando. A cada novo clipe, vamos conhecendo outras partes dessa localidade. Em Choker, é apresentada uma loja de brinquedos com referências da propaganda de DEMA e até de personagens já conhecidos. Enquanto em Saturday, somos levados ao alto mar da região, em uma viagem submarina, com o Trash The Dragon dando as caras novamente.
Se as evidências dos vídeos não forem suficientes para materializar esse universo, Twenty One Pilots já o desenhou para o público, literalmente. Para revelar o Scaled And Icy, a dupla realizou uma live de lançamento diferente de tudo já feito. Voltando aos palcos de forma virtual, Tyler e Josh construíram a cidade de DEMA na tela, composta por todos os elementos anteriormente apresentados no Trench e no Blurryface. Ambientada em uma espécie de Encontro com Fátima Bernardes – com uma certa faixa de abertura -, a transmissão nos leva a um passeio imersivo na genialidade da construção presente em suas mentes, e que agora tomou forma, além de voltar para eras passadas.
Twenty One Pilots nunca esteve tão bem, isso é fato. Tyler Joseph e Josh Dun já são dois homens adultos vivendo comodamente seus relacionamentos com as respectivas esposas, além da forte relação que também existe entre eles mesmos. Joseph ainda desfruta a beleza da paternidade com sua filha Rosie, e vai ser pai pela segunda vez, como anunciado ao final da performance no VMA 2021, e sua batalha incansável contra questões como a depressão e ansiedade parece cada vez mais distante. Donos de um Grammy, turnês inesquecíveis, um recorde mundial e um sucesso que já alcança todas as pontas do globo, a dupla se tornou imbatível. Scaled And Icy é o prato ideal para elucidar toda essa euforia.
A própria capa do álbum é um retrato da nova fase. Dentro do mapa de energia do feng shui, o bagua, mencionado em No Chances, existem oito áreas conectadas a certos aspectos da vida. Rosa, azul e branco estão associados a relacionamentos, família e amigos, um retrato mais do que exato do que representa a banda hoje. Sem deixar a temática sobre problemas psicológicos de lado, ressoado principalmente na sensibilidade de Choker, o otimismo vem com força em versos como os de Shy Away, que falam sobre buscar seu propósito. Temas esses que ainda conversam com o trágico cenário da pandemia, em que as tristezas recorrentes desse contexto foram mais um impulso para buscar mensagens motivadoras e o apoio para lidar com perdas.
O controle de DEMA também não passa despercebido nas letras, com alusões diretas em No Chances: “Nós viemos por você”. E aqui a dualidade se faz mais do que presente, abrindo a diversas interpretações. O domínio da cidade e dos bispos é relativo tanto às inseguranças que assombram nossas próprias mentes quanto à manipulação da indústria midiática, alvo frequente de críticas da dupla. O que é melhor para mostrar a alienação do público do que lançar um disco repleto de batidas mais simplistas que facilmente hitariam no TikTok?
Para quem bate o pé para falar que o novo álbum foge completamente da identidade de Twenty One Pilots, talvez seja preciso retornar um pouco para os primórdios da banda. Desde o início, Joseph e Dun nunca buscaram se restringir apenas a um gênero, e sim passear por uma fusão de elementos de todos eles, e Scaled And Icy é apenas um trajeto diferente desse caminho que ambos têm trilhado, mas longe de ser o destino final. Sempre muito preocupados com a narrativa criada pela ordem das faixas de cada disco, o peso presente no encerramento de Redecorate já é um indicativo do que está por vir em um próximo trabalho.
Apostando mais na guitarra que Tyler finalmente aprendeu a tocar, o álbum ainda conversa e homenageia trabalhos passados da banda. O monólogo de Choker é quase um diálogo direto com o de Taxi Cab, enquanto Never Take It e The Outside ecoam o que já vinha há muito tempo sendo falado em We Don’t Believe What’s on TV. E se as sextas já eram melhores que o suicídio dos domingos, os sábados se tornaram o dia de pintar a cidade.
Scaled And Icy subverte toda e qualquer expectativa que alguém possa ter de um trabalho de Twenty One Pilots. Pode não ser seu melhor álbum, melhor estética, melhor era ou qualquer outra caixinha que o público tente estabelecer para uma banda que já cansou de se definir pela autenticidade. Mas o disco é uma peça necessária para esse quebra-cabeça maluco que constitui a mente da dupla de Columbus. E a prova mais do que precisa de que nunca foi apenas sobre Música.