RuPaul’s Drag Race Down Under quase não encontra a luz no fim do túnel

Cena de Drag Race Down Under. Nela, vemos Kita Mean, uma drag queen branca e de peruca azul claro, com peitos falsos e um vestido branco, segurando um cetro e com uma coroa na cabeça.
Kita Mean foi contra os padrões da franquia e se sagrou vencedora da temporada inaugural de RuPaul’s Drag Race Down Under (Foto: Stan)

Vitor Evangelista

Os meios podem até justificar os fins, mas a primeira temporada de RuPaul’s Drag Race Down Under demorou a sedimentar sua narrativa. O spin-off do show americano foi filmado na Nova Zelândia durante a pandemia, colocando australianas e kiwis na Corrida pelo título de Super Estrela Drag e por trinta mil dólares. O custo foram oito enfadonhos e alongados capítulos, um elenco nada cativante e uma porção de polêmicas racistas, tanto dentro do Ateliê quanto fora dele.

Começando pela chamada das queens, pela primeira vez não submetendo suas próprias fitas de inscrição, e sendo escaladas à dedo. O resultado demonstrou a falta de preocupação da produção, que colocou na competição apenas 2 artistas não-brancas, nenhuma maori e outras 2 com histórico de racismo e blackface na carreira. Jojo Zaho, drag de ascendência aborígene, foi a primeira eliminada, depois de ouvir críticas ao senso estético da passarela inaugural, representada por sua origem e terra natal.

A merda fedeu mais quando Art Simone, franca favorita ao título, levou a bota no pior Snatch Game da história, mas foi trazida de volta dois capítulos depois, sem mais nem menos. O histórico de RuPaul com queens que retornam não é bom, mas o status de Art com a produtora World of Wonder pareceu pesar na decisão, visto que ela já era contratada da casa e se manteve até a Final. 

Foto da bancada de jurados de Down Under. Estão sentados, da esquerda à direita, Michelle Visage, RuPaul Charles e Rhys Nicholson.
O primeiro episódio de Down Under marcou um ineditismo: RuPaul apareceu desmontada na bancada de jurados pela primeira vez; a teoria é que a mala de maquiagens extraviou na longa viagem até a Oceania (Foto: Stan)

A outra drag não-branca era Coco Jumbo, também parte da leva inicial de eliminadas mas, diferente de Art Simone, Jumbo e Zaho não foram nem consideradas para receber o ato de redenção e a chance de competir mais um pouco em Down Under. Quando outras favoritas estrangeiras foram mal, como Asttina Mandela no Reino Unido e Tynomi Banks no Canadá, não houveram botes salva-vidas, segundas chances, ou algo do tipo. É de suma importância relembrar que tanto Mandela quanto Banks são negras, ao contrário de Art Simone, mas que, no fim das contas, não teve culpa nenhuma da supérflua decisão de RuPaul.

De fato, as deliberações de Mama Ru na Oceania foram para lá de questionáveis. Scarlet Adams acumulou 3 vitórias, mas foi chamada atenção na passarela do quinto episódio, a respeito dos casos de black e brownface, em shows onde a drag pintou o rosto para satirizar outras raças e lucrar em cima disso. A dona do império foi enfática no discurso de condenação aos atos de Adams, mas pareceu insegura do que fazer a respeito do assunto, reiterando que não era seu o papel de ‘cancelar’ alguém.

Cena de Down Under, com a drag queen Art Simone triste, vestida com peruca verde e batom da mesma cor, e a legenda amarela com fundo preto, That means nothing.
“Isso não significa nada”, disse Art Simone a respeito de ter sido parte do elenco de Down Under após ser prematuramente eliminada no pior Snatch Game da franquia (Foto: Stan)

Os sinais mistos se mantiveram ao longo dos outros episódios. O pior Snatch Game da história viu em Anita Wig’lit sua vencedora inquestionável, em uma imitação caricata mas eficaz e segura da Rainha Elizabeth II. Pela primeira vez em mais de dez anos, RuPaul enfatizou a vantagem de Anita sob suas competidoras (“você é, sem dúvidas, a vencedora dessa semana”) para, dois episódios depois, mandá-la embora em uma Batalha contra Karen From Finance (outra queen envolvida em casos de racismo, mas ignorados pelo programa). Onde é que faz o mínimo sentido a “hands down, winner” do Snatch sequer chegar ao top 5 da temporada?

Karen permaneceu na competição depois de vencer a estreia e navegar em mares seguros, sem apresentar visuais interessantes ou uma performance digna das 4 melhores do ano. Além disso, Karen se escondeu e não abriu a boca ao ver o racismo de Scarlet ser cobrado, provando sua covardia suprema. A Final de RuPaul’s Drag Race Down Under não é a pior do programa apenas por reunir duas artistas desinteressantes e indignas de tal posição, mas principalmente por ter racistas na briga pela Coroa. Se Adams seria cobrada por seu passado, por que então dar a ela 3 vitórias em uma temporada com apenas 7 desafios? Se Karen performou tão aquém do esperado para o histórico recente da série, por que então mantê-la em uma Dublagem quádrupla pelo prêmio?

Foto da drag queen Anita Wig'lit caracterizada como a Rainha Elizabeth, de terninho amarelo e luvas brancas, acenando gentilmente no painel do Snatch Game de Drag Race Down Under.
Anita Wig’lit? A maior de todas! (Foto: Stan)

A resposta, assim como sua justificativa, é simples: RuPaul não tinha saída. A escalação ciente do racismo de Adams e Karen eliminou-as da real disputa, mas impossibilitar a drag com o melhor histórico de Dublar seria um vexame e um chute no saco do próprio reality, que preza pela excelência semanal das competidoras. Deixar de fora a menina da firma, Art Simone, mesmo após seu calculado retorno, ofuscado pela ausência de uma mísera vitória, também não seria a saída mais acertada. Coube a Kita Mean não poupar o humor na hora de interpretar a Physical original, caminhando sem percalços até o título máximo de Drag Race na Oceania.

Kita Mean se junta ao ótimo escalão de winners estrangeiras (The Vivienne e Envy Peru), e também se coloca ao lado das formidáveis queens que triunfaram em 2021 (Lawrence Chaney e Symone). A melhor amiga de Anita Wig’lit vingou o legado neozelandês das competidoras, colocando no bolso uma porção de australianas convencidas, e o fez com humor, visuais camp renovados e muita honestidade nos confessionários. Seus desabafos sobre a perda de peso e a relação com o pai rechearam Down Under com drama e amor, lágrimas e suficiente material para que o público vibrasse com sua coroação.

É óbvio que Kita pode não ter sido a favorita de cara, mas considerando as opções que RuPaul selecionou para a Final, a queen foi a única boa escolha, encontrando a luz no fim do tenebroso túnel que a temporada se tornou. Mas nem tudo começou perdido, por mais que a falta de um ensaio promocional tenha sinalizado um atenção em letras garrafais para a qualidade do que estaríamos próximos de acompanhar. Na contramão das seasons regulares e seus conceitos de apresentação (como o pastel que rondou o ano 13, o arco-íris do UK e o laranja celofane do All Stars 6), Down Under reaproveitou os visuais de entradas no pôster de anúncio, que também usou um vestido repetido de RuPaul. Na Oceania, aparentemente, não há senso de originalidade por parte da produção.

Cena de Drag Race Down Under, com as queens Jojo Zaho, Elektra Shock, Art Simone, Kita Mean e Coco Jumbo alinhadas em uma fileira.
O clássico Desafio do Reading, quando as queens gongam umas às outras, serviu um momento espetacular onde Art Simone faz piada com a identidade de gênero de Etc, sem cair no preconceito barato e gratuito (Foto: Stan)

A montagem do programa pareceu insegura do formato que gostaria de seguir, abusando de cortes rápidos e cenas emboladas, tornando a experiência de acompanhar Down Under um teste para cardíacos. Os jurados convidados foram poucos, dando espaço para convidados especiais, como Taika Waititi e Kylie Minogue, em aparições relâmpagos pelo Zoom, só para bater ponto na inauguração de Drag Race por lá. Rhys Nicholson assumiu a terceira cabeça fixa da bancada, mas o charme do comediante se dissipou antes da temporada chegar à metade, considerando que todo seu humor era baseado em pobres trocadilhos sexuais.

Os desafios e as passarelas não impressionaram, combinando com o arsenal de drags escaladas para competir. Jojo Zaho saiu rápido demais para deixar qualquer impressão. Art Simone trollou, mas o ar ranzinza acabou diluído e revelou uma persona resiliente e grata ao papel que a arte drag prestou à ela, e não é por acaso que Art leva o título de drag mais proeminente da cena da Oceania. Coco Jumbo não ouviu o conselho passado de queen para queen e inventou de imitar uma cantora pop no Snatch Game. O resultado foi uma Lizzo nada engraçada, que acarretou em duas Dublagens seguidas, e uma merecida eliminação.

A prematura saída de Anita Wig’lit ainda dói no coração, e não há qualquer justificativa para tal ação, senão o favorecimento descarado de Karen From Finance. Anita era uma clara candidata à Coroa, era destemida e maluca, exibia em seu olhar o grau correto de vulnerabilidade e talento para não apenas destruir a competição, mas ganhar o público, ansioso para torcer por alguém do bem e sem passado racista. Sua eliminação no quarto episódio denota o papel gigantesco que ela desempenhou na Corrida, deixando um vácuo de carisma e singularidade, não preenchido por qualquer uma das finalistas.

Cena de Down Under com Kita Mean, drag branca, usando uma roupa roxa futurista, com peruca de dreads brilhantes.
Depois de Sharon Needles, Kita Mean é a segunda vencedora de Drag Race que tem seu nome baseado em um trocadilho com o uso de drogas (Foto: Stan)

Chegando com a promessa da juventude, Etcetera Etcetera viu a falta de preparo tomar conta de seu lado artista. Em uma temporada inaugural e cheia de cães treinados na arte drag, Etcetera ousou em uma polêmica imitação de Linda Chamberlaim no Snatch Game mas depois murchou, se apequenou, e foi embora na virada da season, em uma inspirada Dublagem contra Maxi Shield, essa que sacou um microfone de dentro da roupa e, pela segunda vez na franquia, fez uso dele como apetrecho do Lip Sync.

Etcetera ainda discutiu os papéis de gênero no mundo das queens, denunciou preconceitos que sofreu quanto a sua identidade (desmontada, ela usa pronomes neutros, se considerando uma pessoa não-binária), reafirmando o caráter educacional que, à essa altura do campeonato, Drag Race carrega. No mesmo ano em que Bimini e Gottmik arrasaram tanto nas passarelas quanto em se tornarem ícones para a comunidade trans, o papel de Etcetera na Oceania é de grande impacto; também sentido em Drag Race España, nos ombros de queens como Inti e Hugaceo Crujiente. 

Chega a ser terrivelmente cômico que uma temporada recheada de discussões sociais tenha caído na defesa do racismo e na fuga de qualquer punição por tal crime. Karen From Finance teve seu passado revirado nas redes sociais, com fotos e declarações asquerosas, além de uma grotesca fascinação por bonecos Golliwog, representação pejorativa e preconceituosa do povo negro. Karen mantinha uma coleção deles, chegando até a marcar na pele essa ‘paixão’, em uma tatuagem atualmente coberta. Fato é que a produção de Down Under, ciente dos acontecimentos, manteve tanto Adams quanto Karen na competição até o último momento possível. 

Cena de Drag Race Down Under, com a drag queen Elektra Schock desmontada, e se maquiando. Ela é careca, branca e está sem camisa, desenhando uma sobrancelha azul acima do olho.
Elektra Shock, a alma de Down Under, matou Trixie Mattel de inveja quando, no Desafio do Comercial, imitou os maneirismos de RuPaul e saiu como a vitoriosa da semana (Foto: Stan)

Depois de Etcetera deixar o Ateliê, foi a vez de Maxi Shield dar seu adeus. A drag gorda e peituda entrou muda e saiu calada, aparentemente deslumbrada e até um pouco assustada para com o ecossistema de Drag Race. Seu visual final no Desafio do Makeover (quando as queens recriam alguém à sua imagem) pareceu uma desculpa esfarrapada, feito sem esmero ou qualquer dedicação. O episódio, todavia, teve como protagonistas um time gay de rugby do continente, rendendo bons momentos sobre a homofobia no esporte e como esses homens se portam diante dos demais. 

Uma das protagonistas de Down Under sequer chegou à Final, mas Elektra Shock merece todos os louros possíveis. A construção da narrativa da ‘excluída’ foi evidente quando ela se viu acuada em um Ateliê cheio de piranhas famintas por sangue fresco. Seu status de subordinação, por trabalhar no clube comandado por Kita e Anita, pareceu ter gritado mais alto que o talento da artista, por mais que os visuais e as maquiagens apresentados não vivessem à altura de sua entrega emocional e de carisma.

A imitação cartunesca de Catherine O’Hara no Snatch Game colocou Elektra injustamente numa posição baixa, mas a volta por cima, dada depois de Dublar 2 vezes em 3 episódios e ser feita de gato e sapato por Scarlet e cia, vingou em uma vitória merecida no Desafio dos Comerciais. Os olhos gentis de Shock assistiram queens racistas chegarem mais longe que ela, e também queens piores chegarem à Final. Quando, enfim, ouviu seu Sashay, Away, ela previu o futuro e a Coroa de Kita, dentre todas, a única que conseguiria eliminá-la depois de um Show de Talentos digno das noites do SBT.

Cena de Drag Race Down Under, em um close-up da drag queen Elektra Shock, que é loira, usa uma roupa vermelha com corações no lugar dos seios e longos cílios escuros.
“Eu era modelo antes do acidente” (Foto: Stan)

RuPaul’s Drag Race Down Under não funciona como boa narrativa televisiva, tampouco se sustenta como um derivado decente da grande franquia norte-americana. Down Under também se afoga nas decisões ruins e ignora o bom senso e a moralidade na hora de julgar e ranquear suas competidoras. Vale a pena passar por 8 estafantes capítulos de uma hora de duração? Eu seria louco se dissesse que sim. 

Kita Mean ganhou o Cetro, a Coroa e o cheque, mas deve querer colocar para trás a experiência do público com sua temporada vitoriosa. A esperança é que Elektra, Anita, Art, Coco, Jojo, Maxi e Etcetera voltem em um hipotético All Stars International, e que RuPaul dê o ultimato na Oceania, relegando-a ao ostracismo e ao esquecimento, assim como deveria ter feito com as duas racistas que competiram na Corrida. 

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