Vitor Evangelista
De cara, não tem como mentir: escrever sobre RuPaul’s Drag Race é uma tarefa e tanto. Afinal, são horas e horas de episódios extensos, sem contar o Untucked e seus bastidores, os programas de recapitulação (oficiais e não-oficiais) e, é claro, a internet. As drag queens presentes nas temporadas são pessoas de verdade, tem dramas, conquistas e presença forte no mundo real, sempre expandindo a narrativa do programa para além dos televisores. 2021 se empanturrou da Corrida das Loucas e, depois de viajar da Espanha à Oceania, Mama Ru olha para as segundas chances dentro da América, no sensacional All Stars 6.
Desde a reformulação do formato em 2016 e da exibição da segunda edição do spin-off estadunidense, a ideia da redenção das rainhas perdedoras não se saia tão bem. A receita de 2021 foi escalar um elenco mediano (em termos de histórico na Corrida original), maior que o habitual (13 queens, ao invés das costumeiras 10), sem qualquer grande favorita dos fãs (Gottmik e Gigi Goode, estamos esperando por vocês) e preencher os episódios com espontaneidade e imprevisibilidade.
O resultado foi o melhor All Stars desde a saga de Alaska. A coroação de Kylie Sonique Love, uma drag originalmente da 2ª temporada, apenas atesta o verdadeiro efeito benéfico da competição paralela e seu poder imensurável de redenção, conquista e entrega. Ao vencer a Coroa, o Cetro e os cem mil dólares, Kylie se tornou a segunda mulher trans vitoriosa de Drag Race, e a primeira a ser coroada pela própria RuPaul. Um feito e tanto para quem, anos atrás, debochava de pessoas trans e declarou que nunca autorizaria a entrada delas na competição.
Mas se engana quem pensa que Mama Ru realmente mudou seu pensamento arcaico e preconceituoso. Ela só aprendeu a domá-lo. No ano em que Drag Race abriu ainda mais as portas ao mundo, fazendo ponte aérea da América do Norte à Oceania, RuPaul Charles entendeu que pessoas queer, sempre presentes na cena drag do mundo real, deveriam enfim ser bem-vindas à cena drag de seu reality show.
Por isso, grandes nomes de 2021, como Gottmik, Inti, Vanessa Van Cartier, Bimini Bon-Boulash e a própria Kylie Sonique se tornaram grandes estrelas na competição e na mídia. Já era hora de pessoas trans ou não-binárias receberem seus holofotes de direito. A vencedora pode não ter tido a Corrida mais impecável em termos de vitórias, mas o triunfo de Kylie mostra a visão cada vez mais clara que o All Stars diz muito mais respeito ao passado (ou a um acerto de contas), do que uma condecoração atual. Se fossemos julgar a trajetória de agora, Ra’Jah O’Hara estaria cem mil dólares mais rica, sem dúvida alguma.
Ano passado, o All Stars 5 introduziu novos conceitos na produção, mas a escalação de um elenco mela-cueca acabou com qualquer chance de êxito. Dessa vez, a equipe de produção cavou bem na mitologia de Drag Race e trouxe de volta 13 rainhas de renome (ou quase). Kylie Sonique Love foi eliminada no quarto episódio de uma temporada exibida em 2009. Lá, ela se revelou uma mulher trans no Reunited e, desde então, mudou de nome e construiu sua carreira como um ícone na comunidade e alguém que abraçou o holofote da competição, colhendo frutos que foram além de sua péssima performance no Snatch Game original e seu ótimo Lip Sync de Two of Hearts.
A única vitória dela no AS6 aconteceu no episódio seis (quebrando a tradição da vencedora sempre ser Top nos cinco primeiros desafios), num momento inédito em quase quinze anos de programa. No desafio de atuação que parodiava as obras de Ryan Murphy (RuMerican Horror Story: Coven Girls!), Kylie ficou com o papel da Suprema Jessica Lange e, presa em sua própria cabeça, foi ajudada por Michelle Visage.
A jurada se levantou da cadeira de direção e mostrou na prática o que Sonique deveria fazer e como fazê-lo. É claro que sua trajetória foi além da mãozinha que recebeu de Visage no único episódio em que ganhou, fato é que Kylie já chegou no All Stars 6 com pinta de vencedora. Ao entrar no Ateliê, vestida de vermelho látex e com a peruca loira característica, ela ousou: “Ooh garota… Chegou uma mulher!” (Ooh girl, you got female).
A frase foi uma alusão direta ao chamado das queens no começo da série original, recepcionadas por um “Girl, you got she-mail”, antes de Ru passar a tarefa do dia. She-mail, em inglês um trocadilho para o e-mail (correio eletrônico), também usava a sonoridade para fazer graça do termo shemale, que é pejorativo às pessoas trans. Ao retornar para a competição exorcizando esse demônio, Sonique virou a página de um passado transfóbico de RuPaul. À partir da sétima temporada, o “She-mail” foi substituído, depois de várias pessoas trans repudiarem o termo usado no programa de TV.
Quando o assunto é uma boa segunda impressão, Ra’Jah O’Hara deve estar presente na conversa. A drag queen, originalmente parte do elenco da 11ª temporada, passou de vilã para favorita dos fãs. Seu histórico passado era de uma pessoa raivosa, cheia de opiniões e nem um pouco solícita a ouvir aqueles em seu redor. A volta por cima veio, com ela vencendo 2 desafios, entregando visuais de cair o queixo e assumindo o posto de narradora da season.
O carisma de Ra’Jah alavancou sua persona, que tinha tudo para vencer a Coroa se não fosse o imediatismo (e o atraso) da franquia em colocar uma mulher trans no panteão das drags vitoriosas. Porém, como os anos de Drag Race provaram à exaustão, não é preciso um Cetro no braço para que alguém colha os louros de uma passagem magnânima pela TV (ou nesse caso, streaming, já que o All Stars 6 foi exibido pelo novíssimo Paramount+).
A redenção de Ra’Jah é a maior na história do programa, que tem o histórico de continuar odiando suas vilãs (como Jaremi e Gia Gunn), ou relegá-las ao ostracismo de uma corrida ruim (Roxxxy Andrews). A doce competidora que adotou o roxo como sua cor de assinatura confeccionou todas as roupas que levou, foi o maior destaque do Show de Variedades no número do vestido feito em 1 minuto e venceu 2 desafios de costura (com os visuais excelentes do Baile Azul e a fantasia burlesca do Drag Tots).
Além de seguir à risca os conselhos de Ru, em principal no Snatch Game na pele de LaToya Jackson e no Pink Table Talk, Ra’Jah abriu o coração e falou sobre temas sensíveis envolvendo a infância e a relação com a mãe. Ela é a figura mais brilhante do All Stars 6 simplesmente por cumprir a tabela do que uma temporada de Grandes Estrelas significa. Chegando com fama de maldita, surpreendeu episódio atrás de episódio, mostrando que momentos ruins não nos definem.
Quem experienciou um diferente tipo de redenção foi Ginger Minj. Retornando para sua terceira tentativa de vencer o prêmio, a Sapa Fashion se tornou a primeira drag queen a participar de duas temporadas diferentes do All Stars já nesse formato definitivo de eliminações por batons. Depois de quase ser coroada no lugar de Violet Chachki, Minj competiu no AS2, onde saiu pela porta dos fundos. Nessa volta triunfal ao Ateliê, ela revelou que, em 2016, não estava pronta para competir novamente, e se sentiu obrigada a fazê-lo. Agora, cinco anos mais tarde, ela brilhou.
Vencendo o Snatch Game imitando Phyllis Diller e o Desafio de Leitura, Minj ainda impressionou com o Lip Sync de Phone, da Lizzo, e acabou enriquecendo muito depois de vencer as Batalhas de Dublagem. Pelas 2 que ganhou, faturou 50 mil dólares, metade do valor do prêmio da temporada. Porém, na 3ª tentativa de ganhar a Coroa, Ginger Minj não se mostrou muito diferente do que foi no passado: uma drag engraçadíssima, com olhar certeiro para o humor e um gosto engessado na Moda. No All Stars 6, ela vestiu roupas elegantes e inesperadas, mas nada que justificasse sua vitória. Depois de Shangela, Manila, Latrice e Jujubee, Ginger provou que a terceira vez não dá certo para ninguém.
A derrota em dose tripla também foi sentida por Eureka! Com ponto de exclamação e tudo, a drag tirou o O’Hara do nome, mas continuou sendo a Rainha Elefante de sempre. Espalhafatosa, falastrona e extremamente amável e carismática, a agora estrela da HBO tentou a todo custo impressionar RuPaul e os jurados, mas a falta de vitórias acabou manchando qualquer chance de sentir o peso da Coroa na cabeça. Sua surpreendente eliminação na semifinal foi um dos momentos de maior tensão da temporada, mas o escape do “joguinho” trouxe alívio para alguns, e frustração para tantos outros.
Anunciada logo no trailer do All Stars, a nova dinâmica da competição aparecia em todo final de capítulo, com a drag eliminada da semana sendo tentada com a possibilidade de retornar à competição. Acontece que, nove semanas à dentro, “o jogo dentro do jogo” demorou tempo demais para tomar parte na narrativa. Baseado em nada mais, nada menos, na famosa Ruvenge (quando uma queen retorna à competição e outra sai), o game within a game se mostrou uma injustiça descabida. Por muitos fatores.
O Rudemption Lip-Sync Smackdown, como foi carinhosamente batizado, aconteceu no décimo episódio, e constituía-se de uma Batalha, ao melhor estilo Mortal Kombat. Ao contrário dos Fatalities do jogo original, em Drag Race as competidoras eliminadas iam se enfrentando, duas de cada vez, pelo prêmio de voltar à Corrida. As dublagens, diferente do que rolou no LaLaRaRuZa do All Stars 4, aconteceram durante a temporada, às escondidas. Então, semana seguida de semana, depois que o episódio normal “acabava”, rolava um Lip Sync.
E no All Stars 6, Lip Sync é sinônimo de Silky Nutmeg Ganache. A drag da season 11 passou por muito apuro desde sua temporada original, ganhando fama de mal educada, nada trabalhadora e difícil de conviver. Na volta ao Ateliê, a Doctor Reverend se mostrava acuada, quietinha e nada parecida com a personalidade falastrona que colocou Miley Cyrus nas costas brincando de cavalinho segundos depois de reconhecer o disfarce da cantora.
Refém de como o público a receberia dessa vez, Ganache foi eliminada logo na terceira semana, em um dos momentos mais chocantes da temporada. Não que sua performance até então tivesse sido digna de permanecer na competição, mas a saída prematura de um ícone (por bem ou mal) de Drag Race como Silky mostrou que o All Stars 6 não estava para brincadeira. E seu retorno na Batalha de Lip Syncs criou um universo inédito na franquia até então.
Claro que o formato, por si só, já era novíssimo, mas a trajetória de Silky no episódio foi o bastante para quebrar a internet. Adversária atrás de adversária, ela ia derrotando todo mundo. Silky mandou Jiggly, Yara, A’keria, Scarlet, Jan e Pandora para casa, totalizando seis Dublagens vencidas na sequência. O número de Barbie Girl, onde batalhou sozinha visto a desistência de Davenport, se concretiza como um dos mais memoráveis da mitologia de RuPaul.
De forma geral, o capítulo do Rudemption Lip-Sync Smackdown foi um balde de entusiasmo na temporada (e em Drag Race como um todo), além de ser o episódio mais legal em anos da repetitiva franquia de RuPaul Charles. Quem diria que Silky Nutmeg Ganache, que recebeu um “Meh” da apresentadora depois de desapontar ao som de No Scrubs, se tornaria uma lenda das dublagens em 2021? Quando sua maré de sorte acabou, um gosto agridoce ficou na boca, mas Silky dificilmente continuaria até a Final como Eureka! o fez, fechando sua jornada de retorno à Corrida em uma nota alta e de louvor, mesmo com a derrota ao som de Since U Been Gone.
Depois do retorno nada surpreendente de Eureka! à competição, quem caiu na armadilha da eliminação foi Trinity K. Bonet. Original da 6ª temporada e uma das queens mais amadas do público, TKB encarou o All Stars com respeito, tanto pela grandiosidade da competição, quanto por si mesma, entendendo seus limites, forças e fraquezas. O que acarretou em um histórico colorido, com 2 importantes vitórias e 4 aparições nas Piores da Semana. Esse último fator acabou sendo decisivo no momento de sua injusta, dolorida e criminosa saída do Ateliê.
Muitos anos depois de ganhar o título de Assassina de Dublagens, TKB encontrou espaço para colocar a pauta da HIV na tela do maior programa LGBTQIA+ do mundo, educando a audiência e mostrando na prática como é viver com o vírus. Em adição aos temas que discutiu, a drag de Atlanta surpreendeu com visuais arrojados (a reedição do visual da promo da season 6), performances avassaladoras (a Beyoncé no Rusical) e o melhor Lip Sync da temporada, contra Laganja Estranja ao som de Physical de Dua Lipa.
Quem não brilhou em nada, porém, foi Pandora Boxx, outra das drags do clube da 3ª vez competindo. A primeira rainha de comédia da franquia retornou apática e não conseguiu vencer um único desafio, sendo eliminada no episódio que a santificou lá em 2009, o Snatch Game. Fosse essa qualquer outra temporada, Pandora receberia a bota logo de cara, mas a produção manteve-a no páreo, dando deixas importantes para que a veterana performasse suas qualidades mais notáveis (em especial a personificação de Carol Channing no Rusical e a atuação carregada como Myrtle Snow em RuMerican Horror Story).
No grupo das sabotadas, não tem ninguém mais injustiçada que a coitada da Jan. Recém-expelida da 12ª temporada, ela voltou com sede ao pote mas pecou na primeira regra do All Stars: sem tempo de se assistir na TV em 2020 e, consequentemente, aprender com os erros, Jan pisou no Ateliê para cair nas mesmas iscas que a fez perder contra Gigi Goode e Jaida Essence Hall no ano passado. Finalmente quebrando seu ciclo vicioso de derrotas e saindo como a Top das Tops no Rusical do Super Bowl, Jan assistiu sua “narrativa” dentro do AS acabar antes mesmo da metade, o que nunca é bom sinal.
Sinal esse captado por A’keria C. Davenport, que falhou em uma porção de desafios e, quando ofertada com a possibilidade de retornar, decidiu pela recusa. Parte de vencer e obter sucesso em Drag Race repousa na saúde mental de quem compete (como Veronica Green bem provou em sua participação relâmpago no UK 3). A escolha de Davenport demonstra a ciência de queen de suas próprias limitações, o que não a impediu de entregar passarelas de outro mundo, nunca decepcionando neste quesito.
Se A’keria conseguiu chegar à Final da 11ª temporada para não passar da metade aqui, Scarlet Envy mal cruzou a linha de chegada em suas duas participações no show. Ocasionalmente feita de tonta, a drag de NY foi julgada como salva semanas seguidas só para ter seu batom escolhido em um desafio onde não merecia ser mandada embora. Ao lado de Jan, Envy provou que RuPaul tem suas favoritas e suas desprezadas. O que é uma pena, considerando seu ponto de vista artístico e os visuais que apresentou no All Stars 6.
Yara Sofia retornou, ajudando a apagar da memória do público o pavoroso All Stars 1, mas não tinha muito a fazer. Assim como Jiggly Caliente, a segunda mulher trans a integrar o elenco de 2021, um recorde para a franquia. Refém de sua péssima habilidade como costureira, ela foi mandada embora logo na estreia, no segundo capítulo da premiere dupla. O posto de primeira a sair, porém, ficou com a Mãe Peruca, Serena ChaCha.
Proveniente da 5ª temporada (e também humilhada lá), a drag queen retornou como saco de pancadas mais uma vez. Sem qualquer chance de triunfar em Drag Race, sua performance confusa no Show de Variedades apenas esclareceu para os desavisados o quão complicada a Corrida é: em um único deslize, percepções antigas de sua Corrida original podem ser um fator decisivo na hora de escolher o batom eliminatório. Além, é claro, de protagonizar uma polêmica fora das telas com A’keria.
A melhor edição de Grandes Estrelas desde 2016 não consegue este posto por acaso. Para além de um Show de Variedades (note como o nome não tem mais “Talento”), e de eliminações injustas (Scarlet, Jan e Trinity), o All Stars 6 soube entregar o que falta há muito em Drag Race: imprevisibilidade. Seja na brilhante corrida de Symone, no carisma monstruoso de Lawrence Chaney, nos crimes das finalistas de Down Under e no fogo de Carmen Farala, a franquia tem pecado em construir tensão e dúvida no percurso de coroar uma de suas participantes.
Com a vitória de Kylie, em adição ao marco para a comunidade trans e a recompensa à uma das figuras mais antigas do show, a equipe de produção mostra que o All Stars pode e deve ser concorrido, maluco, delicioso de acompanhar e um bocado emblemático. O elenco esticado e o número inchado de capítulos pode ter causado um cansaço desnecessário, mas a concretização de uma Final com direito à música country, entrevistas emocionantes e um escorregão transformado em cambalhota fez tudo valer a pena.
A escalação de um elenco sem grandes favoritas foi um acerto; o maior senso de justiça possível na hora das liberações foi um acerto; mas a performance incrível e redentora de Ra’Jah O’Hara foi O acerto. O All Stars conseguiu abençoar até as Lip Sync Assassins, estendendo sua aura de cura e recomeço frente aos fãs para drags como Laganja Estranja, Coco Montrese, Brooke Lynn Hytes, Jessica Wild e até Mayhem Miller.
Para o futuro, que RuPaul saiba escolher suas rainhas, que RuPaul não force narrativas ou fabrique vencedoras e que RuPaul mande o Snath Game of Love para o Inferno. Com uma possível promessa da aguardada temporada que reúne apenas antigas vencedoras, um Grandes Estrelas Internacional e mais uma porrada de spin-offs estrangeiros em produção, RuPaul’s Drag Race vai muito bem, obrigado, e o All Stars vai melhor ainda.