Vitor Evangelista
O efeito Netflix alavanca produções, populariza obras e abre espaço para um reconhecimento, tanto de crítica quanto de público, que seria impensável fosse qualquer outro nome envolvido se não a gigante de streaming. Sem trajetória em festivais, Professor Polvo vem arrematando elogios e congratulações desde que foi lançado. O documentário, focado na amistosa relação entre um mergulhador e uma polvo-comum na África do Sul, sensibiliza, mas deixa de lado seu papel de conscientização e respeito, largando às traças a responsabilidade do Cinema.
Craig Foster era um homem desiludido com a vida. O cineasta, que aqui atua como protagonista e tem seu nome creditado na indicação ao Oscar, guia os noventa minutos de rodagem quase que com apenas sua voz. Narrando sua rotina depressiva até o primeiro encontro com a polvo, que não ganha nome próprio para não ser ainda mais humanizada, e desenrola em cima da longa relação entre eles e a construção de um vínculo que ultrapassa os limites entre homem e natureza.
Enquanto desbrava aquela área selvagem e populosa, o mergulhador registra o que pode, filmando sequências tão bonitas que soam sobrenaturais, registros poéticos do ciclo da vida aquática, que Foster gentilmente se refere como ‘a floresta’. No âmbito estético, My Octopus Teacher (erroneamente traduzido no masculino) é show de bola. Cada enquadramento (departamento comandado por Roger Horrocks) daria uma bela capa do caderno Tilibra de 10 matérias para começar bem o ano letivo na oitava série. Mas o buraco é mais embaixo.
Despreocupado em estudar o animal com atenção, ou melhor, em relevar esse estudo para quem assiste, Craig Foster continua cavoucando o Oceano até a polvinha ganhar a confiança dele e vice-versa. O aspecto turista do filme glamouriza a vida marinha e o ecossistema representado, dando a entender que qualquer um pode comprar uma bomba de oxigênio e a Canon mais potente e desatar a mergulhar para encher os pacovás do polvo alheio.
Não que Professor Polvo tenha qualquer obrigação ética e moral de dar aula sobre os temas, a ironia do título está ligada ao caráter egoísta de seu protagonista (e não se engane, o polvo está no nome, mas a rodagem é inteira sobre Foster). As ’aulas’ ministradas são para o homem: o animal se machuca, mas é o mergulhador que sente a dor; o animal se estressa, mas quem sai de cena bravo é o humano. É como se Foster quisesse gravar sua própria cinebiografia mas, sem exercer qualquer papel relevante para tal, resolveu contextualizar tudo usando a figurinha carismática do polvo.
Assistimos a um verdadeiro drama de Craig Foster, motivado e potencializado às margens ilustres do animal, que só está tentando viver sua curta vida numa boa, mas continua sendo objeto de fascínio e auto adulação. Falta material para documentar o ciclo da vida do polvo, falta pesquisa e falta foco. Professor Polvo se finaliza nos contando que Foster não mergulha mais sozinho, e agora fundou uma organização que luta pela proteção da região, mas sem nunca impedi-los de lucrar em cima dela, aparentemente.
Tratando de maneira tão simplória do tema da vida selvagem e do humano intervindo no mundo animal, é de se espantar que o filme esteja rapando todos os prêmios que teve direito. Depois de surpreendentemente vencer o Sindicato dos Produtores, o dos Montadores e o BAFTA, Professor Polvo se encaminha para a glória do Oscar, em uma categoria recheada de temas sociais relevantes, representatividade frente e atrás das câmeras e, honestamente, em uma seleção de documentários que respeitam seu formato, caráter e alcance, ricos em informação, opinião e melhores desenvolvidos.
Olhando o cenário do ano passado, com 4 potentes filmes diversos e a escolha de premiar o único estadunidense metido a besta do bando, 2021 tem os mesmos princípios nas mangas. Entre uma denúncia jornalística na Romênia, uma investigação sobre a velhice no Chile e dois filmes dos Estados Unidos que lidam com a comunidade negra e com a comunidade das pessoas com deficiência, é claro que o Oscar penderia para glorificar o documentário que amacia o ego de seu realizador, enquanto emociona o público com registros naturais dos animais selvagens. Na verdade, não há surpresa alguma no previsto resultado.
O trabalho de Pippa Ehrlich e James Reed na direção e no roteiro não é de todo negativo, já que o filme oferece doses cavalares de ternura e medo, com foco nas sequências em que o polvo luta por sua vida e se salva por um triz (pelo menos três vezes), nos colocando no banco do motorista, ou no kit de mergulho ao lado, nessa jornada impressionável. O porém está na motivação, que poderia de fato mergulhar nas vivências do bichinho e deixar a emoção se erguer naturalmente, mas Professor Polvo opta pela fabricação datada de carinho, apreensão e de falsa simpatia, o que é uma pena.