Bruno Andrade
Em um Japão não muito distante, na tentativa de lidar com o envelhecimento da sociedade e aliviar o sufocamento econômico promovido pela política neoliberal, é criado um programa que encoraja cidadãos idosos a serem voluntários de eutanásia. A política em torno do projeto é simples: encurtar institucionalmente a vida dessas pessoas, oferecendo uma recompensa de 100 mil ienes pelo sacrifício, que podem ser gastos livremente com o objetivo de fornecer o necessário para um “último desejo”. Esse é o enredo de Plano 75 (Plan 75), a distopia necropolítica dirigida e roteirizada por Chie Hayakawa, que integra a Competição Novos Diretores da 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
Submissão do Japão na corrida pelo Oscar 2023, o filme tem poucos diálogos e longos silêncios, nos quais se revela de forma pungente a maneira a qual os mais velhos têm sido esquecidos em governos neoliberais e suas políticas “jovens”. Em uma das cenas, Michi (Chieko Baisho), uma idosa demitida de seu emprego como camareira de hotel, questiona, ao utilizar um computador compartilhado, o porquê ele não está funcionando. Ao chegar para “ajudá-la”, a funcionária mais jovem, com apenas alguns cliques, diz que “está tudo funcionando normalmente”, e dá as costas. Sem explicações, Michi pergunta-se: “o que estava errado?”. Nessa cena, Hayakawa sintetiza toda a força por trás da história: vistos como párias e pesos nessa sociedade distópica – que, como toda distopia, guarda muitas similaridades com a realidade –, não há tempo ou interesse para explicar qualquer mudança social. O ritmo é, simplesmente, outro.
Com respostas sempre hostis aos seus pedidos de ajuda, a personagem entrega-se totalmente à solidão. Sem conseguir encontrar outro emprego, a idosa é seduzida pelo Plano 75, o projeto governamental que recebe pessoas a partir de 75 anos para o suícidio assistido. Com o “sucesso” do programa, em pouco tempo idosos de 65 anos também começam a ser aceitos. O roteiro permite entender que, uma vez instaurada, a política de mortes é cada vez mais abrangente, visando conquistar toda a sociedade mais pobre, independentemente da idade. O que se torna evidente na trama de Michi é que ela precisa, na verdade, de companhia e amizade, mas o governo oferece ainda mais isolamento.
A solidão cortante de Plano 75 concentra-se nas necropolíticas neoliberais, em que a morte e a vida tornam-se, elas próprias, objetos de mercadoria e privatização. Com inscrições apenas presencialmente e via telefone, com atendimento 24 horas por dia, sete dias por semana – já que os idosos encontram dificuldades em inscrições pelo computador –, o projeto revela uma cultura mobilizada em empurrar corporativamente a morte aos indivíduos mais pobres, visto que esse esforço para atender suas solicitações de encerramento da vida não chega nem perto das integrações tecnológicas promovidas pelo Estado.
Essa necropolítica também foi explorada recentemente em Tokyo Vice (2022), série do HBO Max baseada no livro Tóquio Proibida (2009), do jornalista investigativo Jake Adelstein. O que parece ser uma diferença nas duas obras na verdade aponta para uma realidade incômoda entre elas. Enquanto Tokyo Vice trata da investigação acerca dos suicídios de idosos nas ruas da capital do Japão, e a ligação dessas mortes com a Yakuza (a fim de proteger a família, os idosos se matam para pagar, com o seguro de vida, as dívidas que a máfia construiu com os juros, descobrindo-se posteriormente que, pelo valor pago, o seguro de vida desses idosos sempre foi o foco dos gangsters), Plano 75 aponta para as políticas públicas que têm o mesmo objetivo da máfia japonesa: exterminar os idosos, cujo movimento compartilha de forma similar obter os mesmos fins econômicos.
Por isso grande parte do enredo de Plano 75 consiste na representação da frieza dos sistemas corporativistas. Chie Hayakawa evita o sentimentalismo no roteiro, e reflete as personagens como simples corpos em dominação. Há outras duas histórias paralelas às de Michi: a de Hiromi (Hayato Isomura), um funcionário do programa que oficializa os contratos com os idosos e se vê atingido pessoalmente quando seu tio inscreve-se no Plano 75 – alimentando sua autoconsciência de que o abandonou quando chegou à vida adulta –, e Maria (Stefanie Arianne), uma imigrante filipina que trabalha efetivamente no necrotério dos idosos.
Ainda assim, é a relação entre Michi e Yoko (Yuumi Kawai), uma das telefonistas de atendimento ao programa, que estabelece a possível moral do longa de 105 minutos. Preservando um diálogo constante com Yoko, visto que as telefonistas mantém o contato frequente com os interessados até a consolidação das mortes, Michi – sem filhos ou parentes, e que encontra sua única amiga, também idosa, morta na cozinha de casa – sugere que as duas se conheçam pessoalmente. Ela é informada que clientes e funcionários não têm permissão para isso, na tentativa de evitar que se apeguem emocionalmente ou, pior, que os idosos mudem de ideia sobre a eutanásia.
Apesar da resistência, próximo ao fim do filme, Yoko, que sempre foi uma ouvinte disposta a realmente escutar as infinitas histórias de Michi, se encontra com ela. Michi entrega todo o dinheiro que recebeu, e diz que esse foi seu “último desejo”. Os encontros hiper controlados e cronometrados entre a idosa e a representante normalmente impassível do Estado e da própria morte – que, sob o contexto do filme, são a mesma coisa – dão lugar a uma felicidade genuína, embora pouco duradoura. Alertando para a importância da comunidade – mais do que para as políticas de extermínio dos governos –, Plano 75 mostra que, a despeito de Michi desistir da eutanásia ou não, sempre será tarde demais para ela; todas as coisas não ditas entre gerações, agora, foram institucionalizadas.