Raquel Dutra
E se eu te pedisse para imaginar o seu maior pico de amor, seu maior pico de adrenalina e seu maior pico de dor? Numa generalização grosseira, digo que provavelmente sua mente reconstituiria três momentos diferentes da sua vida, com um intervalo de tempo considerável entre eles. Acertei? Agora fazendo um recorte mais atencioso, se você for uma mulher, é muito mais provável que eu tenha errado minha previsão invasiva e que esses três momentos emocionalmente distintos sejam dolorosamente próximos para você. Tem espaço para os dois casos aqui, mas se você se enquadrar no segundo, é especialmente bem-vinda a Pieces of a Woman.
O filme escrito por Kata Wéber e dirigido por Kornel Mundruczó se concentra no processo de luto de Martha (Vanessa Kirby), que perde a bebê que esperava junto de seu companheiro Sean (Shia LaBeouf) logo depois do parto, realizado em casa com ajuda da doula Eve (Molly Parker). Ilustrando como o fim de algo tão esperado afeta o sistema de todos que aguardavam sua chegada, a força motriz de Pieces of a Woman pondera, obviamente, sobre maternidade, luto e recuperação. A chave, porém, está em sua abordagem, feita através da existência feminina, que nunca é apolítica.
É assim que se justifica aplicar questões de gênero numa história que cutuca temas tão religiosamente intocáveis e imaculáveis para a sociedade como a tragédia, a morte e a gestação. Sob a socialização feminina, nada na vida (nem mesmo o fim ou o início dela) pode ser compreendido de forma isolada. Por que um filme sobre tudo isso se chamaria Pedaços de uma Mulher, então, oras? Porque mesmo feminina, a vida (incluindo tanto seu fim como seu início) ainda é regida pelo patriarcado, que por sua vez, não se interessa por mulheres vivendo sua completude.
O pretexto de Pieces of a Woman exalta muitos ânimos antes mesmo de qualquer leitura se encaixar com muito custo em algum lugar no meio de toda sua subjetividade. Não é para menos, afinal, a escrita de Kata Wéber também não via a hora de dar as cartas de seu drama, baseado em um trauma que ela mesma viveu. Contrariando as estruturas narrativas clássicas do Cinema, a roteirista coloca o ápice do filme logo em seus 30 primeiros – e famosíssimos – minutos.
Dentro deles, se concretiza o parto de Yvette, a filha de Martha e Sean que nunca ouviu seu nome fora do ventre da mãe e que marcou sua existência no mundo externo numa lápide. Neste momento, pela primeira e única vez, nossa protagonista não está despedaçada. O pai até sai de cena uma hora ou outra para atender alguma necessidade do momento, mas a personagem de Vanessa está 100% presente, vivendo o que só ela pode viver em sua totalidade, ininterruptamente e sem pausa ou cortes. Sem pedaços.
Além de servir como uma demonstração dos talentos de sua roteirista, de seu elenco e de seu diretor – sim, um homem, e logo chegaremos lá -, o plano sequência do parto toma uma função quase documental à medida em que Pieces of a Woman avança e os rumos dos personagens se tornam cada vez mais inconsistentes, confusos e borrados. Aqui, depois de tudo terminar da forma mais trágica possível e o nome do filme surgir na tela, Kata Wéber já parece sussurrar: “não tem como compreender algo em sua completude se ele está despedaçado”.
A partir disso, Pieces of a Woman avança rapidamente mês a mês sem levar adiante a tensão dos primeiros minutos. O drama conscientemente se distancia cada vez mais do clímax de sua abertura porque prefere acompanhar a montanha-russa de sua protagonista ante qualquer certeza narrativa. Reproduzindo a mesma vivência emocional de Martha, o filme não é linear, e primeiro, existem os picos de felicidade e amor, depois, a adrenalina, e então, o buraco negro do vazio.
Entretanto, o drama também não é totalmente solto e imprevisível. Pieces of a Woman se equilibra quando pega carona na marcação das estações do ano, estabelecendo paralelos temporais, narrativos e simbólicos: ao decorrer do outono, do inverno e da primavera, observa-se, em cada um dos elementos do filme, o desmoronamento, a esterilidade e o florescimento. Tudo, no entanto, continua a ser apresentado através de registros recortados dos momentos dos personagens dentro de cada um daqueles intervalos temporais, ao contrário do prólogo do filme, que oferecia uma janela completa e direta para a quase-família.
Assim, Pieces of a Woman se transforma numa sinestesia. Ele estimula o visual, nos cenários quentes prontos para receber a bebê que depois são desmontados e substituídos por cemitérios e lápides; o olfato, na obsessão que Martha tem com o cheiro que guarda na memória da bebê; o paladar, em todas as vezes que a protagonista engole em seco ou sente o gosto amargo da dor tornar a brotar nas suas falas; e até o tato, no cuidado que abriga os gestos da mulher fragilizada, e na agressividade da frustração do quase-pai.
A orquestra da dor é regida pela performance radical de Vanessa Kirby. Ela é a mulher em pedaços, que tem de lidar com o despedaçar de tudo ao seu redor, primeiro se entregando de forma brutal à dor. Depois, segue compreendendo sua realidade fragmentada aos poucos, tentando encontrar qualquer maneira de remendar-se seguir em frente enquanto o peso de voltar à vida depois de tamanho padecimento a puxa para baixo. No ínterim da recuperação, na conformidade do sofrimento e na diferença entre ter (um bebê) e ser (uma mãe), Kirby não constrói uma personagem de extremos e Martha não busca compensação.
O que gradativamente dissolve a conexão absoluta que um dia existiu entre ela e o companheiro. Enquanto Vanessa trabalha transformando a dor e tristeza profundas em um sentimento cínico, incrédulo, desistente e apático, Shia LaBeouf está na impaciência destrutiva e passiva de Sean, cujo olhar apaixonado e ansioso se transforma num abismo de sofrimento, angústia e rancor. Ele busca consolo e superação do trauma em elementos externos, mas Martha está recolhida em si mesma e no que sobrou de sua filha. Logo, todos dentro ou fora da tela, percebem que assim não tem como as coisas darem certo.
Os altos e baixos de Martha e Sean ainda são atravessados pelos pitacos da família, partindo na maioria das vezes de quem seria a avó da história, a implacável Elizabeth de Ellen Burstyn. A mãe da quase-mãe se revela uma sobrevivente em um dos poucos momentos inflamados do filme pós-parto, e por isso, sua postura diante do trauma é combativa e inconformada, completamente diferente dos caminhos que sua filha toma. No meio das duas, que infelizmente não chegaram juntas ao Oscar 2021, nasce o conflito que segura Pieces of a Woman como uma obra mais complexa do que um drama de tribunal.
Elizabeth pressiona Martha para levar o caso à justiça, mas a filha não quer encaixar sua dor numa tentativa de compensação. Aliás, além das discussões de gênero e maternidade que o filme pode suscitar, outra questão forte é a inevitabilidade da dor e a impossibilidade de projeção. Não importa encontrar um culpado, não tem muito o que falar sobre o luto, nada vai preencher o buraco da perda. Nem toda a justiça do mundo é capaz de alimentar o olhar vazio da mãe que morreu junto com seu bebê.
Voltando ao casal central da história, o desenvolvimento dos personagens de Kata Wéber é incomodamente desproporcional. Comparando homem e mulher principais de Pieces of a Woman, pode-se observar que Martha, ainda que dividindo tamanha profundidade emocional conosco, é uma completa desconhecida. Não sabemos quem ela era, qual era sua ocupação (mesmo seu local de trabalho aparecendo em uma das primeiras cenas do filme), e nenhum amigo aparece para prestar apoio no momento mais difícil de sua vida.
Sean, no entanto, é apresentado. Sabemos que ele tem problemas de relacionamento com a mãe de Martha, sabemos o que ele faz no trabalho, sabemos que ele está feliz em ser pai. Sabemos também como seu luto e dor se manifestam, sabemos até de suas lutas pessoais, seus defeitos e falhas de caráter. Enquanto isso, a personagem principal de Pieces of a Woman segue afogada em dor, e mesmo que sua condição emocional seja incontestável e absolutamente compreensível, ninguém, em momento algum, pergunta o que ela quer fazer ou como deseja prosseguir.
Narrativamente, ao passo em que Sean se mostra um personagem completo, Martha é totalmente reduzida ao seu sofrimento. E Pieces of a Woman não parece fazer isso na única intenção de mergulhar a história na questão do luto materno, já que outras provocações surgem daqui, e o pulso da roteirista é firme, mais predominante até mesmo que o de seu diretor. O drama sabe da profundidade do tema que aborda, sabe como é a experiência de mães e mulheres na sociedade e sabe que nada pode ser isolado. Então, desenha o exato oposto disso na tela para que seja claro que não é assim que as contas se fecham.
Depois de tanto despedaçar sua personagem, Pieces of a Woman encontra seu desfecho justamente no ato de se completar. Martha junta seus cacos, expressa como se sente, vive uma epifania e redefine o destino de outra mulher. Ela junta as cinzas da bebê e um objeto do pai, resolve suas desavenças com a mãe, e assim consegue seguir em frente. Assim é que o filme deixa claro que o conflito surge porque a existência feminina não pode ser fragmentada. Em Martha, amor e dor são inacreditavelmente próximos um do outro, e o movimento de tentar se separar para se encaixar em caixinhas que não são sequer suas é certamente destrutivo.
A protagonista de Pieces of a Woman também briga com a idealização da mulher, que em termos práticos, não é benéfica como tenta ser. Martha não quer ser uma força da natureza, uma heroína, um exemplo de superação ou de luta por justiça. Aqui o filme reproduz um paradoxo imposto à existência feminina, já que já que o ‘sexo frágil’ na verdade precisa ser incansável. A nossa personagem não corresponde a isso. Ela, inclusive, falha. Sua mãe também falha, a mulher mais próxima dela em um dos momentos mais importantes de sua vida também falha. Mais uma vez se distanciando dos extremos, a saída é compreender a totalidade, entre erros e acertos, amores e dores, lutas e desistências. E se nada disso ainda for convincente, o filme coloca seu final feliz depois de tanto sofrimento como algo possível apenas quando Martha segue a vida sozinha.
Com tanto pano pra manga de um debate de gênero, uma direção também feminina pode ser o pedaço que falta no filme. É entendível, no entanto, que um casal que viveu algo parecido com o tema de Pieces of Woman tenha escolhido contar essa história em conjunto, a partir da escrita pessoal de Wéber. Ela, aliás, é a maior marca técnica do filme. É curioso observar, mas à medida em que a roteirista trabalha com crueza a experiência feminina, o diretor não despedaça o texto de sua esposa, compreendendo que a realidade já deve fazer isso com ela. É claro e contundente que sua história pessoal e sua vivência feminina estão ali, no filme. Se não estivessem, eu também não estaria aqui, nesse texto.