Ludmila Henrique
Na cultura sul-coreana, há um conceito conhecido como In-Yun, que pode ser lido como “destino” ou “reencarnação”. Em gênese, In-Yun é o pressentimento que nos arrebata quando entendemos que uma eventualidade estava predestinada em nossos acasos, desenhada em algum no campo cósmico, e que nada e nem ninguém, poderia ser capaz de interferir naquela factualidade. Em Past Lives, longa de estreia da cineasta Celine Song exibido no Brasil durante a 25ª edição do Festival do Rio, vemos o movimento de tempo entre dois melhores amigos e a maneira que seus destinos estão entrelaçados involuntariamente com suas vidas passadas.
Past Lives segue a trajetória de Na Young (Seung Ah Moon), jovem sul-coreana, que migrou do leste asiático para o Canadá e posteriormente para os Estados Unidos para vivenciar o tão perseguido sonho americano. Antes de assimilar as decorrências de suas escolhas, Young abandonou seu primeiro amor em seu país de origem, o jovem Hae Sung (Seung Min Yim), que embora distante do seu ponto de vista, permaneceu internalizado em algum vão de sua memória.
O arco dividido em três atos no decorrer de 24 anos regressa no momento em que a protagonista, agora conhecida como Nora (Greta Lee) e oficialmente cidadã norte-americana, reencontra com a figura de Hae Sung (Teo Yoo) nas redes sociais e reiteradamente resgatam as lembranças perdidas por meio de mensagens diárias. Embora os avanços tenham desencadeado uma memória afetiva entre os dois, a diferença entre rotas e a distância impossibilitou que o romance seguisse para um caminho sólido, contribuindo para um novo afastamento. Ambos seguiram suas vidas, conheceram outras pessoas e se apaixonaram por elas, entretanto, nunca conseguiram esquecer de maneira efetiva os acontecimentos do passado.
O longa-metragem é, além de tudo, um filme sobre cidades, sobre o espaço entre elas, suas semelhanças e dessemelhanças. A fotografia de Shabier Kirchner captura a beleza de dois polos diferentes, Seoul e Nova York. Em primeiro aspecto, por ambientar a infância de Nora e Hae Sung, a capital sul-coreana é retratada essencialmente por cenários arborizados, divagando por paisagens naturais e pátios escolares. Além da ambientação, a climatização dos primeiros minutos de tela são matizados por tonalidades mais vivas e expressivas, representando não apenas a pureza desse período, mas também o florescer da conexão entre os protagonistas.
Contrário ao clima vivaz da juventude, Nova York parece um muro de concreto, sólido, firme e acinzentado. A metrópole é palco do turismo estadunidense, retratado como um espaço na qual as pessoas vão para visitar, fotografar seus lugares históricos e adentrar nos restaurantes noturnos. O centro representa o amadurecimento de Nora, da mulher forte na qual ela se tornou, e que encontrou seu conforto em meio ao caos da rotina agitada na grande cidade.
Nora é um espelho da própria cineasta, que também migrou da Coreia do Sul para os Estados Unidos. Assim como Celine Song, a personagem mantém essa conexão entre as duas superfícies. Uma metáfora dos dois, ao mesmo tempo que nenhum deles. Ela carrega consigo suas raízes coreanas e a recordação da sua infância, mas igualmente se encontra como uma garota tipicamente estadunidense. Ela é duas metades que se completam e que compartilham desse amor mútuo entre os dois mundos.
Diferente disso, parafraseando a fala da protagonista, Hae Sung é em sua completude, um homem sul-coreano. Ele leva em sua essência os pensamentos, ideais e princípios da cultura coreana, compondo uma personalidade tímida e observadora, extremamente respeitosa e questionadora. Hae Sung conduz uma nostalgia acolhedora para Nora, trazendo múltiplas indagações de como suas vidas poderiam ter seguido caminhos diferentes se ela tivesse permanecido na Coreia do Sul, como as coisas poderiam ter se desenhado para um novo rumo.
A trama dos personagens é sublinhada pela vasta sensação do “e se…”. Em ritmos descompassados, a sensação de como as coisas poderiam ter sido diferentes na vida de Nora e Hae Sung domina a tela de modo pontual, emergindo nos momentos de pausa, na troca de olhares e na sonoridade que anuncia de maneira sucinta o que esses personagens significam um para outro naquele momento. A trilha sonora de Daniel Rossen e Christopher Bear totalizam esse sentimento, com timbres que invadem a cena e atingem o espaço e as emoções dos espectadores, que também seguem na reflexão sobre as escolhas que determinaram o específico momento de suas vidas.
Somando a ligação em In-Yun, o atual parceiro de Nora, Arthur (John Magaro), configura outro aspecto na trajetória da personagem. A inquietude dele em razão da nova aparição de Hae Sung, carrega consigo a apreensão de novas manifestações emocionais entre os antigos melhores amigos de infância. Ainda assim, mesmo que o novo homem alcance os sentimentos de Na Young pela nostalgia, Arthur é uma representação de uma realidade, de um fato. Ele configura a escolha madura de Nora, reflete um verdadeiro encontro de almas, o “ficar” que estava predestinado, diferente de sua convivência com o seu antigo amor, que é marcado, sobretudo, pelo passado.
Por outro lado, a maneira que Celine Song anexa o conceito de destino no interior da cinematografia é mais pertencente ao sinônimo de encontro entre almas, do que de almas gêmeas. Isso fica evidente em meio a própria relação de Arthur e Hae Sung, que se conectam em razão de outro vínculo comum em suas vidas, o de Nora. O caminho trilhado por ela e sua transição de espaços também precedeu para o encontro dos dois, que talvez, se não fosse por ela, nunca teriam acontecido nessa vida ou poderia ter acontecido de outra maneira.
A trama nos transporta para uma reflexão interna. Ela consegue, de maneira minuciosa, sensibilizar a audiência delicadamente e impactar a extensão mais profunda dos nossos sentimentos. A sensação que fica é de conciliação com o nosso eu anterior, com os atos que acreditamos ser erros ou acertos, e que na verdade, já estavam alinhados de maneira natural em nossa sina. Past Lives é um filme sobre amor, abandono, passado e presente. Sobre as conexões que fazemos quando criança e que moldaram nossas decisões como adultos.