Mariana Nicastro
Após décadas de filmes de super-heróis, obras subversivas desse tema nascem como algo novo, diferente das fórmulas surreais representadas sob o véu puro e íntegro das produções Disney. Porém, mais interessante do que assistir à jornada já conhecida de heróis quase perfeitos, de super-homens, é acompanhar o desenvolvimento, conflitos e contrastes de um anti-herói, sem pudor, honra ou valores e objetivos generosos. Afinal, dualidades e fortes conflitos internos os fazem mais humanos e reais.
Com essa premissa nada heróica, violenta, explícita, mas ainda intimista e sensível, Pacificador surge como um magistral exemplo desse subgênero, que rendeu uma indicação ao Emmy 2022. A obra de comédia e ação é original da HBO Max, criada, roteirizada e dirigida em cinco de seus oito episódios por James Gunn. Spin-off do longa-metragem O Esquadrão Suicida (2021), a série revela as características das produções do cineasta: o tom sarcástico, zombeteiro e violento, mas equilibrado.
O piloto, denominado Um Novo Turbilhão (A Whole New Whirled), introduz a perspectiva do Pacificador (John Cena) após os acontecimentos de O Esquadrão Suicida, com o recrutamento do vilão para uma nova missão proposta por Amanda Waller (Viola Davis) e uma nova equipe para acompanhá-lo no Projeto Butterfly. A investigação ronda uma raça de borboletas alienígenas que parasitam seres vivos no planeta Terra, em busca de propagarem sua existência.
Pai dos Guardiões da Galáxia (2016), Gunn havia sido demitido da realização do terceiro filme da franquia após ter tweets antigos e ofensivos recuperados por um ativista da extrema direita estadunidense. O diretor, que já havia se desculpado pelas piadas feitas no passado, foi rapidamente contratado pela Warner Bros. Pictures para salvar a ideia do esquadrão de vilões da DC nos cinemas.
Aplicando seu estilo na produção da HBO, Peacemaker, o nome original da produção, desconstrói a ideia do vilão frio e arrogante, sugerida em seu prelúdio. Aqui, a sua personalidade e passado são explorados, humanizando-o. Protagonizada pelo carismático John Cena, o ator dá vida a Christopher Smith, o Pacificador. Um anti-herói bruto e ignorante, mas também ingênuo e espontâneo. Sua honestidade e autenticidade são características que o transformam ao decorrer dos episódios, somados à inspeção de suas camadas que desencadeiam a empatia do público.
Mas afinal, é possível gostar do Pacificador? Considerando não apenas a morte de Rick Flagg, mas também seus traços vulgares, misóginos, brutais e assassinos? À primeira vista, jamais. É preciso, então, um mergulho intimista na perspectiva do – até então – vilão, desmascarar seus medos, inseguranças, traumas e compreender as vivências que o tornaram este homem. E é essa a linha que Peacemaker segue. Afinal, crescer com um pai como Auggie Smith (Robert Patrick), um fascista e racista cruel, à la Homelander, é capaz de desenvolver uma personalidade problemática em qualquer criança.
Nos quadrinhos, o pai de Christopher era nada menos do que um nazista que participou da Segunda Guerra Mundial, cujo fantasma seguiu atormentando seu filho. Quando cresce, o Pacificador usa suas habilidades para buscar a paz, derrotando, principalmente, governos totalitários. Já na obra de Gunn, Smith é não só importunado pelas ideias do pai, como pela aparição do Dragão Branco. Junto da raça alienígena, as duas problemáticas funcionam como pontos de partida para o desenvolvimento do anti-herói, em busca da figura heróica que existe dentro de si.
Peacemaker veio para mostrar que, na maior parte das vezes, a maldade é construída e que, no caso de Smith, também pode ser desmantelada. A atuação de John Cena contribui muito para o equilíbrio da personalidade do protagonista. Ele é brutal e apático enquanto busca a paz a todo custo, mesmo que para atingi-la precise recorrer à violência e morte. Suas atitudes, porém, carregam uma infantilidade e forte crença pessoal em seus valores, de forma que assistimos a um anti-herói escrachado, mas carismático, capaz de conquistar a simpatia do telespectador e dos demais personagens em tela.
Quanto aos últimos, eles têm características únicas e se destacam cada um ao seu modo. Emilia Harcourt (Jennifer Holland) é uma agente durona e áspera, capaz de amolecer o coração do Pacificador. Misteriosa, ela é experiente mas, apesar das habilidades, tem valores a aprender com sua nova equipe. Já o Vigilante, ou Adrian Chase (Freddie Stroma), é o parceiro excêntrico e violento de Smith que, de acordo consigo mesmo, distribui “uma justiça brutal”. Fã obcecado do anti-herói, ele proporciona doses extremas de um humor ácido e cenas absurdas.
A carismática Danielle Brooks dá vida a Leota Adebayo, uma agente simpática e novata, que cria um laço cômico e afetuoso com Christopher, além de ter grande importância para o universo da trama. Sua amizade com o Pacificador é a mais improvável possível, o que torna a experiência de vê-los juntos em cena intrigante e interessante, contribuindo para um crescimento do protagonista.
Para fechar a lista, a narrativa ainda insere o desajustado John Economos (Steve Agee), o líder Clemson Murn (Chukwudi Iwuji), que esconde um segredo sinistro, e o enérgico e exótico Judomaster (Nhut Le), que sempre busca brechas para atacar o Pacificador e o Vigilante. Quanto às borboletas, são as principais inimigas da trama e provam-se reais ameaças, já que qualquer um pode ser parasitado e ter um destino fatal.
Como um todo, Peacemaker apresenta um desenvolvimento espetacular de personagens e da trama. O roteiro de Gunn é fechadinho, completo e entrega muito mais do que aparenta sugerir no início, com os episódios iniciais da temporada. A trama se desenvolve para algo maior com naturalidade e os protagonistas recebem essa evolução da mesma maneira.
A comédia, ação e os dramas pessoais do Pacificador são equilibrados. O humor é irônico e pontual, funcionando com exatidão. A série tem consciência da galhofa que visa e usa disso para zombar de si mesma e de seus exageros. Como a delicadeza de Smith com sua águia de estimação, Eagly, que o humaniza, cria uma espécie de humor nonsense e equilibra cenas de violência extrema ou drama, com interações entre o Pacificador e o seu tão amado pet.
Sobre as cenas de violência: são explosivas e sangrentas. A brutalidade, nudez e sexualidade explícitas condizem com os absurdos sugeridos pela obra e, da mesma forma que produções como Deadpool (2016), conversam com a origem e o perfil do protagonista. As cenas de ação são eletrizantes, muito bem coreografadas e progridem, encontrando seu ápice na season finale, denominada Chutando o Pau da Bavaca.
O encaminhamento final da narrativa é inspirado e conclusivo. De fato, o Pacificador encontra paz consigo mesmo e reconhece virtudes em si e nas relações cultivadas pela equipe. E quando Peacemaker não poderia surpreender ainda mais, os últimos minutos da finale trazem participações especiais de personagens bastante conhecidos do universo, com interações divertidas e inesperadas, ainda que breves.
A série eleva o patamar da DC ao comprovar que com o tom e direção certos, seus heróis vindos dos cinemas podem ter pitadas engraçadas, sob histórias divertidas, cativantes, simples, muito motivadas e criativas. Trata-se de uma das melhores – senão a melhor – criação de James Gunn. Com tudo isso, era de se esperar que Pacificador receberia ótimos olhares do público e da crítica.
A produção de alto nível e qualidade, contudo, poderia ter sido ainda mais homenageada e relembrada. Com apenas uma indicação no Emmy 2022, na categoria Melhor Coordenação de Dublês em Série de Comédia ou Programa de Variedades, a brilhante ação cômica foi esquecida na lista de concorrentes a Melhor Série de Comédia. Na premiação, ela compete com nomes como Barry, Cobra Kai, Gavião Arqueiro, The Righteous Gemstones e What We Do in the Shadows.
Séries como Patrulha do Destino e Watchmen (também do HBO Max) e a já citada The Boys, baseadas em histórias da DC Comics, foram obras premiadas em edições passadas do Emmy. A penúltima, por exemplo, foi indicada 26 vezes, enquanto o sucesso dos heróis ao avesso recebeu 5 nomeações. Quanto a esta, a produção do Amazon Prime Video e sua representação de anti-heróis nas telas têm semelhanças com o estilo de Pacificador, ainda que a audiência, resultante de uma distinta divulgação de ambas, tenha lhe entregado outros efeitos nas premiações. A série é, de fato, digna de nota. Levando o prêmio para casa ou não, merece maior destaque dentro do nicho de super-heróis e de comédia, subvertendo o primeiro gênero com maestria e perspicácia.