Pedro Yoshimatu
O desafio de contar uma história é repleto de decisões difíceis, e o de contar a sua própria é um desafio ainda maior. Essa é, no entanto, é a tarefa de Steven Spielberg em seu novo filme, Os Fabelmans, uma semi-autobiografia que utiliza de elementos narrativos fictícios para refletir na própria relação do diretor com a sua narrativa pessoal, sua família e sua paixão pelo Cinema.
Na obra, acompanhamos a história de Sammy Fabelman (Mateo Zoryan, durante a infância, e Gabriel LaBelle ao longo da trama), que se apaixona pela Sétima Arte após assistir uma exibição de O Maior Espetáculo da Terra, um drama épico de 1952 dirigido por Cecil B. DeMille. O protagonista, inicialmente receoso sobre a experiência, assiste o filme com seus pais e tenta replicar uma cena particularmente impactante com um trem em miniatura e a câmera da família. Sua mãe Mitzi (Michelle Williams), uma pianista e entusiasta das artes, entende logo de início a sensibilidade e a paixão de seu filho pelo Cinema. Seu pai Burt (Paul Dano), no entanto, é um pragmático engenheiro que tem dificuldade em considerar tais interesses como algo mais do que um hobby.
Essa tensão entre paixão e pragmatismo é uma constante na vida familiar dos Fabelmans. Um elemento importante no desenvolvimento da narrativa é quando o tio de Sammy (Judd Hirsch), um antigo profissional dos circos e do cinema, visita a família e traz junto à sua excêntrica personalidade uma visão intrigante — ao mesmo tempo que problemática e marcada pela dor — do que é a arte, a paixão individual de cada um e como ter um chamado pode causar muita separação entre seus entes queridos.
Os eventos na vida pessoal de Sammy progridem e acompanhamos alguns eventos dramáticos no desenvolvimento da história: após uma viagem de acampamento, o patriarca da família pede a seu filho que produza um registro da excursão, com o intuito de elevar os ânimos de Mitzi após o falecimento de sua mãe. É durante a edição e montagem do filme que o protagonista percebe uma relação muito afetuosa entre sua mãe e o melhor amigo de seu pai, o engenheiro Bennie (Seth Rogen), que gera atritos entre os Fabelmans e eventualmente leva a um divórcio dos pais. Muitos desses eventos têm contrapartidas reais na biografia de Spielberg, que utiliza da narrativa como forma de compreender e dialogar com seu próprio passado.
O longa adentra em diversos debates interessantes da vida do diretor, como sua experiência com o antissemitismo, o desenvolver inicial de sua vida amorosa na adolescência e o papel do Cinema na sua personalidade e relações pessoais. Quando Sammy é convidado a dirigir um filme sobre uma excursão escolar para a praia, ele encontra seu protagonista em um dos seus principais bullies, o atleta Logan (Sam Rechner). Após a exibição da produção, Logan confronta Sammy sobre o motivo pelo qual ele havia sido retratado de maneira tão positiva quando atormentava o garoto de tantas formas; o jovem diretor hesita na resposta, dizendo que a decisão tornaria seu filme melhor.
A sequência final de The Fabelmans — título original da semi-autobiografia — mostra um Sammy mais velho, em crise pelas dificuldades de se inserir no mercado cinematográfico. Ao ser convidado para uma entrevista de emprego, ele recebe a oportunidade de conhecer o lendário diretor John Ford (David Lynch), uma grande influência pessoal de Spielberg, que de fato o conhecera em sua juventude. Ford dá uma aula ao jovem utilizando duas pinturas em seu escritório, afirmando que uma cena pode ser interessante quando o horizonte se encontra acima ou abaixo da imagem, mas nunca ao centro. Toda a montagem, conduzida por Michael Khan, é uma experiência interessante de metalinguística, contrapondo o papel narrativo do diretor experiente com a própria linguagem do filme.
O estilo narrativo do novo longa de Steven Spielberg é muito compatível com a maneira como o diretor está acostumado a contar histórias, como nas premiadas paixões de uma Nova Iorque repleta de gangues em Amor, Sublime Amor: um protagonista comum, de fácil identificação com o público e que perpassa e lida com problemas sociais dentro de suas próprias limitações humanas. A tradução desse estilo para uma narrativa de acontecimentos semi autobiográficos é o grande desafio em Os Fabelmans que, aguardado por muitos anos, é concluído com o sincero tom autoral marcante da filmografia do cineasta.
Recipiente do Globo de Ouro para Melhor Filme de Drama, o longa utiliza dos aspectos autobiográficos de seu diretor para traçar uma narrativa cativante sobre equilíbrio entre ambições e relações pessoais, ao mesmo tempo que usa de sua base familiar para construir personagens muito interessantes e fascinantes. Paul Dano se destaca, retratando um Burt Fabelman apaixonado por sua família, mas conservador em seus modos, com uma dificuldade profunda de entender os desejos de sua esposa e de seus filhos. Além disso, Judd Hirsch e Michelle Williams também foram agraciados com nomeações na premiação.
Já no Oscars 2023, Os Fabelmans foi indicado a sete categorias, incluindo a de Melhor Filme, mas também de Melhor Diretor, para Steven Spielberg, Melhor Roteiro Original, para Spielberg e Tony Kushner, Melhor Atriz, para Michelle Williams, Melhor Ator Coadjuvante, para Judd Hirsch, Melhor Trilha Sonora, para John Williams, e Melhor Design de Produção, para Rick Carter e Karen O’Hara. A história é um retrato complexo da relação de um autor com sua criação, sua personalidade, seus anseios e suas aspirações. O consagrado diretor utiliza de sua constatada experiência na arte de contar histórias para ser bem-sucedido, de maneira elegante, em um desafio muito pessoal: o de narrar a sua própria.