Vitória Gomez
Um dos nomes mais falados da Arte no momento, Annie Ernaux chegou à 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. A escritora francesa recentemente venceu o Prêmio Nobel de Literatura e, ainda em 2022, estende sua atuação à indústria cinematográfica com Os Anos do Super 8, presente na seção Perspectiva Internacional do festival. Ao lado de David Ernaux-Briot, seu filho e co-diretor, Ernaux torna as fitas caseiras da família, registradas em uma câmera Super 8, um documentário maior do que sua vida, se debruçando sobre a essência da memória e da juventude.
Isso porque, apesar da imagens da mulher, seu então marido, Philippe Ernaux, e os dois filhos do casal mostrarem excertos do cotidiano dos quatro, a narração onipresente da autora, responsável pelo roteiro de Les Années Super 8, reflete sobre o próprio caráter da memória e do tempo. As filmagens, a grande maioria pelas mãos de Philippe, que adquiriu o objeto, traçam um panorama geral da vida da família, entre os anos 1972 e 1981. Abrindo a obra com a gravação do momento em que Annie e as duas crianças, David e Eric, chegam em casa do trabalho e da escola e vêem a novidade comprada pelo marido, os 60 minutos de duração passam pelo dia a dia nas residências da França e em viagens de férias no exterior, e culminam nos meninos já crescidos e na separação do casal. Porém, para além de descrever acontecimentos e lugares, Ernaux mescla a contação das histórias com seus pensamentos sobre a época.
Os pensamentos, no entanto, são nostálgicos e até melancólicos. Os recortes de The Super-8 Years (título em inglês), justapostos estrategicamente na montagem de Clement Pinteaux, terminaram de ser gravados há mais de duas décadas. Lançado em 2022, a produção francesa – e, antes de tudo, Annie Ernaux – reflete sobre a época com a visão de vinte anos de bagagem e vivências. Inclusive, a escritora menciona algumas de suas obras, principalmente A frozen woman, que seria lançada em 1994 e, à época, tratava-se apenas de um manuscrito, mas prefere focar nas observações acerca de seu trabalho do que em si.
Autora de quase 20 livros, a narradora de Os Anos do Super 8 lembra da carreira do marido, dos pensamentos durante as viagens, das conversas com a mãe, que morou com a família durante alguns anos, e do papel de parede e relíquias cuidadosamente penduradas nas paredes do primeiro apartamento do casal, amadoramente registrados por Philippe na Super 8. Quanto à sua própria produção artística, o que Ernaux tem a dizer é que, em certos momentos felizes, tudo o que conseguia pensar era no manuscrito a esperando em sua mesa de cabeceira, e como ela esperava que este ia salvá-la – sem saber como e nem do que.
Quando Philippe Ernaux adquiriu a Super 8 e começou as gravações que se converteriam no documentário, Annie ainda estava para começar a carreira como autora publicada. Seu primeiro livro, Les Armoires vides, foi lançado em 1974, e narra o aborto clandestino sofrido pela protagonista, assim como seu processo de entender como uma criação sufocante na classe média francesa a levou até ali. Quase três décadas depois, Annie Ernaux publicaria O Acontecimento, obra autobiográfica que revisita o aborto sofrido por ela, na qual encara o caráter universal do procedimento. Ou melhor, da negligência e tentativa de Estados e políticas machistas de controlar o corpo de mulheres.
Hoje, Ernaux é considerada uma das mais importantes autoras da Literatura francesa, tendo vencido o prêmio Marguerite Yourcenar em 2008 e, mais recentemente, o Nobel de Literatura, ambos pelo conjunto de sua obra. Ao mesclar suas narrativas ficcionais a temas biográficos e estes, por sua vez, à universalidade desses mesmos temas, a principal característica da prática de Annie teve um termo cunhado em sua homenagem: a autosociobiografia. Em O Lugar, publicado em 1983, a autora revisita a história do pai, se debruçando acerca das relações familiares e de classe. Já em Os Anos, de 2008, Ernaux mescla relatos de sua vida à trajetória do direito das mulheres na França, em uma aula de História e Sociologia que a coloca em um lugar de impessoalidade, mesmo ao narrar suas próprias experiências.
Já consolidada como referência na Literatura, Annie Ernaux se aventurou no Cinema ao lado do filho quando a ocorreu que os registros “não eram apenas um arquivo familiar, mas um testemunho dos passatempos, estilo de vida e aspirações de uma classe social na década após 1968”. As fitas caseiras, esquecidas na gaveta de Annie após a separação de Philippe, foram desenterradas a pedido de David Ernaux-Briot, para mostrar aos seus filhos mais sobre o avô.
Como era a intenção da escritora, Os Anos do Super 8 traça apenas um brevíssimo panorama da sua vida, amplificados por sua incessante narração reflexiva. Mesmo que a falta de familiaridade com o conjunto da obra de Ernaux possa atrapalhar a conexão do telespectador com o monólogo, breves frases despertam curiosidade suficiente para seguirmos. Para Annie Ernaux, que já se viu conquistando a maior honraria que a Literatura, seu principal campo de atuação, poderia conceder, se ver aos 30 e poucos anos posando para a lente de seu então marido não poderia ser nada além de uma ode à memória. Ainda mais quando, quem se lembra, é seu “eu” de 80 anos.