Nathalia Tetzner
Ela não gritou quando viu uma aranha assustadora e escolheu os acordes da guitarra em troca das sapatilhas de balé, mas dentro dela sempre existiu um desejo oculto: o de se tornar uma musa pin-up, daquelas que os meninos colecionam posters. Então, começou a ler revistas para adolescentes e a depilar as pernas na tentativa de se tornar a rainha do baile de alguém. Ainda assim, ela continuou invisível para eles. Há 15 anos, o álbum One of the Boys dava luz a Katy Perry, essa jovem que procurava incessantemente o seu lugar no mundo e que não teve outra escolha a não ser se infiltrar entre os garotos para deixar a sua marca.
Seguindo com o tom desafiador e, até mesmo, irônico da faixa-título, Perry dedicou a maior parte do disco em provar que, ainda que se esforçasse, a delicadeza de colares de pérolas nunca a satisfariam como a provocação despertada por acessórios adornados de cerejas. E não é que a irreverência convenceu? A sonoridade pop rock misturada com a imaginação fértil da cantora resultou em algo completamente diferente do que as outras garotas da Música estavam fazendo em 2008. Ela veio, de fato, para mudar o jogo da indústria com uma declaração que não poderia ser mais incisiva para o seu primeiro projeto sob o nome artístico.
Influenciada por Alanis Morissette e toda a ruptura causada na década de 1990 pelo álbum Jagged Little Pill, Katy Perry estava decidida em emplacar as 13 faixas de One of the Boys e se transformar em uma inspiração para as novas gerações de ouvintes. De uma certa maneira, Perry tinha em mente a necessidade de reproduzir o que Morissette significou para ela durante a sua juventude. Por isso, a fim de alcançar uma rachadura no ordinário, a californiana adotou temas que os artistas masculinos exploram sem limites desde que o universo foi criado: o sexo e a sexualidade.
O diferencial aqui não caiu no pioneirismo e sim na abordagem, afinal, outras cantoras já haviam trilhado esse caminho tortuoso para as mulheres anteriormente. É através das bochechas coradas e dos olhos cativantes que Katy Perry arrancou os gritos da mesma quantidade de meninas que qualquer membro de boyband nos anos 2000. Infelizmente, mesmo que a malícia do duplo-sentido nas letras tenha sido grandiosa nos minutos cruciais, unindo o disco como um todo, algumas insinuações feitas por ela acabaram datadas pelo teor potencialmente nocivo, principalmente para a causa LGBTQIA+.
Não é de se estranhar que Madonna tenha se encantado pela primeira composição de Perry a tocar nas rádios quando a mesma começa com os versos: “Eu espero que você se enforque com seu lenço H&M/Enquanto se masturba ouvindo Mozart”. O que é de se questionar é a verdadeira intenção de Ur So Gay, que utiliza o termo como um insulto não relacionado a homossexualidade, no entanto, enraizado em uma certa moralidade. Com notas tímidas no violão, um vocal ríspido e um videoclipe cômico, a obra é um capítulo que mereceu ser esquecido junto com os demais atos desse tempo que retratam percepções ultrapassadas da sociedade.
Com doses de fetichização circulando pela corrente sanguínea do álbum, I Kissed a Girl veio para continuar o frenesi de caráter duvidoso e, simultaneamente, consagrar Katy Perry como um ícone da comunidade. Em 2017, o grupo de defesa dos direitos civis LGBTQIA+ estadunidense, Human Rights Campaign, concedeu à cantora um prêmio pelo ativismo ao longo da carreira que, após One of the Boys, realmente foi efetivo: “Espero estar aqui como evidência de que não importa de onde você veio, é para onde você está indo e que uma mudança pode acontecer se abrirmos nossas mentes e abrandarmos nossos corações”, afirmou Perry durante a cerimônia.
O primeiro single do disco também significou o encontro dos produtores Max Martin e Dr. Luke, uma dupla imbatível no estúdio quando o objetivo era a criação de uma sonoridade extremamente radiofônica e, nem por isso, menos autêntica. Nos anos que se seguiram, escutar a artista significava entrar em contato com a combinação perfeita entre eles, pensada exclusivamente para a persona Katy Perry. Contudo, a colaboração chegou ao fim com as acusações de abuso e assédio sexual feitas pela cantora Kesha contra Luke; o experimental Witness (2017) encerrou a parceria com apenas Martin assinando a direção executiva.
Colecionando nomes que ascenderam ao topo com o sucesso comercial do álbum, o time de Perry tomou forma quando Glen Ballard, responsável pelos bons frutos da sua ídola Alanis Morissette, aceitou trabalhar com a menina, que bateu em sua porta carregando um violão e um sonho. Nas canções delirantes à la Hot N Cold, o multi-instrumentista Benny Blanco fez história com a sagacidade de seu ritmo. Já nas passagens mais cruas, Greg Wells deixou o DNA nas texturas estridentes e teatrais de faixas como Mannequin. A tarefa de arrematar os diferentes estilos ficou a cargo do técnico em masterização Brian Gardner, que cumpriu com maestria.
Esperta e criativa ao extremo, Katy Perry não foi apagada pela genialidade de sua equipe. Nos palcos, ela demonstrou que, devido a sua experiência nada fácil no mercado musical, sabia exatamente como queria fidelizar a imagem dessa novata fissurada por gatos infláveis, frutas e figurinos camp. Em 2008, pegou a estrada com a Vans Warped Tour, festival que revelou Paramore e 3OH!3, e logo arrumou as malas para a sua primeira turnê solo, a carismática Hello Katy Tour. Repleto de referências próprias do projeto, o cenário dominado por um gigante coração rosa cravou que Perry se tornaria uma especialista em eras temáticas.
O estilo pin-up e a estética que remonta aos anos 1940 foram usados com sabedoria pelo diretor de arte do disco, Ed Sherman. Partindo do logo, divertidamente colorido, passando pela ambientação cartunesca até os elementos tão característicos como os flamingos rosas, a obra se tornou um símbolo de sua época. Por meio das lentes do fotógrafo Michael Elin, One of the Boys foi eternizado com uma capa que captura o oceano hipnotizante do olhar da musa. E, se “com cada cicatriz tem um mapa que conta uma história”, a melódica e dramática Self Inflicted sumariza esse aspecto magnetizador.
Inserida por completo no contexto de avanço das redes sociais e a consequente interação dos músicos com as plataformas, a artista navegou pelo MySpace, Vimeo e Tumblr como ninguém. Com vídeos em formato de vlogs, Perry divulgou o seu trabalho ao mesmo tempo em que desenvolveu um laço profundo com os fãs, os ‘katycats’. Seja rodando em círculos na sala de espera da gravadora, a Capitol Records, importunando a sua gata de estimação Kitty Purry ou se enrolando em luzes de natal, ela criou momentos que são lembrados com carinho e, obviamente, muita nostalgia.
Duas décadas separaram o nascimento de Katheryn Elizabeth Hudson e a criação da identidade Katy Perry, ou melhor, da possessão da menina que cantava no coral da igreja pela entidade popstar. Antes de assumir o nome de solteira de sua mãe, Katy Hudson distribuiu apenas 200 cópias do seu primeiro álbum auto-intitulado, algo que não se repetiu com One of the Boys, detentor de 7 milhões de discos vendidos. Dessa vez, porcentagem fundamental para tamanho sucesso foi a existência de uma equipe capaz de fazer tudo acontecer e que, em 2023, permanece ao lado da cantora.
Entre os membros mais efetivos, o empresário Bradford Cobb e o desenvolvedor artístico Chris Anokute deram tudo de si para que a jovem não tivesse outro projeto cancelado como o simples e rebelde (A) Katy Perry, ou que gravasse vocais para alguma banda que tentasse se aproveitar do seu sucesso, como The Matrix fez em 2009 ao lançar músicas produzidas quando ela tinha apenas 19 anos. Injetando respeito ao nome e à marca Katy Perry, o ambiente de If You Can Afford Me resumiu a ascensão: “Porque alguns não tem paciência/Alguns me chamam de manutenção cara/Mas você paga a conta/Porque esse é o trato”.
Compositora nata, Katy Perry deixou a caneta pesar nas duas faixas mais dolorosas e sombrias do álbum: Thinking Of You e I’m Still Breathing. A primeira, totalmente autoral, contém os versos mais inspirados dela que, através de uma progressão tocante, ganharam amplitude na balada romântica trágica, sendo praticamente um prelúdio da história contada por The One That Got Away no sucessor de One Of The Boys, o pop perfection Teenage Dream (2010). Por outro lado, a respiração pesada foi a chave da segunda canção, dotada de tendências suicidas e que evidenciou o processo de independência vivido por Perry durante essa fase.
Personalizando a luz no fim da estrada, a artista entregou uma redenção única em Lost, música que trata da sensação de não se sentir em seu próprio corpo e o de saber o caminho para casa e, mesmo assim, não conseguir voltar. Surpreendentemente, o sentimento deixado para os ouvintes foi o de conforto por descobrir que há mais alguém no universo que já esteve perdido. O especial acústico MTV Unplugged potencializou a melodia e, ainda, trouxe o belíssimo cover de Hackensack da banda de rock alternativo Fountains of Wayne e o toque sensível de Brick by Brick, gravação que infelizmente acabou descartada do disco.
Para aqueles que morrem de saudade somente em lembrar das performances grandiosas em premiações na época em que One of the Boys conquistava incontáveis indicações e vitórias, desde 2021, Katy Perry relembra os grandes clássicos da era na setlist da sua residência de shows em Las Vegas, a PLAY. Com cenários de tirar o fôlego, cogumelos e um banheiro completo em escala gigantesca, Perry oferece um prato cheio para os ‘katycats’ da velha-guarda mais saudosistas e coloca a extravagante Waking Up In Vegas em destaque no espetáculo para os olhos e ouvidos.
Entretanto, a experiência sensorial do projeto não ficou restrita aos palcos, uma vez que a edição física passou a ser uma peça fundamental da memória do público graças ao design atemporal de Shayne Ivy. Para além do ensaio fotográfico esplêndido e um material de encarte que fez qualquer colecionador ficar obcecado, o desenho de morango estampado no CD permanece capaz de trazer o cheiro da fruta à mente. Katy Perry, querendo que todos se lembrem dela como em Fingerprints, também investiu nos videoclipes em que os diretores Melina Matsoukas, Alan Ferguson, Kinga Burza e Joseph Kahn eternizaram as canções.
Depois de beijar uma garota e gostar, se infiltrar entre os garotos e tentar de todas as formas colocar a sua digital na história da Música, a jovem deixou para trás a inocência de debutante e assumiu que estava pronta para o amadurecimento com I Think I’m Ready, faixa que encerra o disco e a sua sonoridade pop rock. Celebrando 15 anos de One of the Boys e de sua carreira artística sob o nome Katy Perry, a camaleoa que transitou por diversas eras, refletiu as cores do arco-íris com PRISM (2013) e recuperou o sorriso em Smile (2020), chega em 2023 sabendo exatamente qual é o seu lugar no mundo.