Jho Brunhara
O trailer de O Problema de Nascer coleciona no YouTube uma proporção de 70% de deslikes em comparação aos likes. Sua página no IMDB recebeu uma votação em massa de avaliações negativas de 1 estrela. Afinal, de onde vem esse ódio que o filme encontrou no público? O longa austro-alemão, que faz parte da 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, é extremamente ambicioso. Pelos motivos errados.
Escrito por Sandra Wollner e Roderick Warich, mas dirigido apenas por Wollner, The Trouble with Being Born conta a história de Elli, uma androide com a aparência de uma jovem garota que mora com seu ‘pai’, com quem é programada para ter um relacionamento bizarro. É exatamente aqui a maior polêmica do filme. Apesar de O Problema tratar de outros assuntos, precisamos primeiro falar do elefante na sala: a pedofilia.
Retratar algo problemático no cinema não significa concordar com ele, há diversas formas de se construir críticas, e uma delas é a partir da reprodução. Porém, o longa acaba não se preocupando muito em exibir para seus espectadores o que é certo ou errado, deixando a famosa interpretação nas entrelinhas. Mas as decisões de Wollner e sua ambição ultrapassam a linha tênue do defensável, e de boas intenções o inferno está cheio.
Elli, apesar de ser uma robô humanoide, é interpretada por uma menina real de 10 anos. O pseudônimo Lena Watson, utilizado pela jovem atriz, foi criado para proteger sua identidade. No filme, ela utilizou uma prótese de silicone no rosto para que seus traços faciais fossem irreconhecíveis, e se assemelhassem com os robôs que já temos por aí, como Sophia, a Robô. Lena é impressionante no seu papel, e mostra um controle muito grande da personagem que ela, e seus pais, concordaram em dar vida.
Mesmo assim, as cenas extremamente desconfortáveis (felizmente poucas) levantam um ponto de interrogação sobre o que filme pode virar nas mãos erradas. Em uma era que já temos deepfakes e bonecas sexuais hiper-realistas, literalmente qualquer coisa, mesmo com propósito puramente artístico, pode sofrer fetichização. Ou seja, esse é um assunto que não permite nenhuma brecha.
Sandra Wollner relevou em entrevista que desistiu de utilizar uma atriz maior de idade caracterizada como criança para escalar Lena no papel. O motivo? Apenas capricho da diretora. Expor uma menina de apenas 10 anos, mesmo com a autorização dos pais, à um papel sexualizado foi completamente desnecessário.
Se Wollner já tinha em mente utilizar a máscara de silicone para modificar a feição da personagem, e usou recursos de CGI em cenas de ‘nudez’, então qual seria o grande obstáculo que a impediu de fugir dessa problemática e usar uma atriz mais velha que pudesse realmente consentir com o que estava fazendo? E O Problema de Nascer não é nem de longe uma obra-prima de suma importância para a humanidade que justifique uma dobra dessas.
A única explicação é que surfar em uma boa polêmica é mais interessante do que preservar a pequena atriz. A arte é sim livre, mas os limites da liberdade de expressão existem para, principalmente, proteger minorias, ou grupos que corram riscos. Todo cuidado é pouco. O longa é mais do que essa grande problemática, mas é impossível se livrar do mal-estar que as escolhas de Sandra trazem, que engolem todo o resto.
O amargo das decisões de Wollner pelo realismo se misturam com as de seu universo fictício. Lá, apesar de tudo, a pedofilia não é romantizada. O que assistimos é um futuro de humanos perdidos em sua própria solidão que utilizam de androides customizáveis para ter alguma companhia, ou trazer de volta uma versão genérica de alguém que já morreu. Mas não somos entregues para Pinóquios de silicone e sistemas complexos que querem ser reais, e sim para ecos de nós mesmos. Eles não são livres, são máquinas de repetição de tudo que seus proprietários são.
O Problema de Nascer entra para a questionável lista de obras que teriam se dado melhor sendo episódios de Black Mirror. E isso é um elogio à mesma altura que é uma ofensa. Pelo menos os grandes chefões da Netflix não deixariam que uma polêmica fosse mais importante que a história em si. Ou deixariam? Independentemente, é importante que a arte cause estranhamento, mas é ainda mais importante como. Infelizmente, boas ideias não fazem um bom filme. Ideias de jerico muito menos.