Vitória Silva
Não é de hoje que a atribuição de que as comédias têm a obrigação moral de nos fazer rir caiu por terra. Diante dessa sentença, podemos citar inúmeros exemplos de produções que ultrapassam tanto o espectro do riso quanto o do choro, caminhando desde a britânica viciada em sexo até o americano bigodudo que vira treinador de um time da Inglaterra. E, se nem a essas produções é convencionado mais esse papel, quem dirá a um dos personagens principais quando o assunto é provocar riso.
Depois de Coringa, a velha história do palhaço infeliz que provoca alegria apenas no público se tornou mais do que batida, talvez até ultrapassada e irremediavelmente rasa. Mas, anos antes da produção de Todd Phillips, o ator Selton Mello trouxe uma fábula semelhante para as telonas. Pela segunda vez no posto de diretor de um longa, ele aproxima essa narrativa conhecida de forma imensurável, não apenas por decidir ambientá-la no estado de Minas Gerais, mas por dar luz a um caminho profundo sobre o próprio eu, originando uma produção que não poderia ter outro nome se não O Palhaço.
Lançada em 2011, a narrativa acompanha o cotidiano do elenco do Circo Esperança. Entre músicos, malabaristas e mágicos, há como figura central e de grande destaque a dupla de palhaços Puro Sangue e Pangaré, que por acaso também são pai e filho. Por trás das cortinas, assumem a identidade de Valdemar (Paulo José) e Benjamin (Selton Mello), o primeiro também sendo o dono do circo. Na outra mão, o personagem de Mello é responsável por cuidar de todas as burocracias envolvendo alvarás, pagamentos e até sutiãs arrebentados de integrantes do espetáculo.
Vivendo não apenas pelo riso do público, o protagonista também existe pela satisfação de seus colegas próximos, enquanto não possui o seu próprio autocontentamento. Aliás, não é digno de ter ao menos uma identidade, sendo obrigado a carregar uma certidão de nascimento acabada para se provar. Somado ao nomadismo da rotina circense, Benjamin não herda nem mesmo um endereço fixo, e, assim, seu lugar no mundo. E nessa simbologia que nasce a crise existencial que conduz o que poderíamos chamar de Coringa brasileiro – isso se Daniel Rezende não tivesse representado um paralelo com tanta maestria não muito tempo depois.
Os demais personagens do Circo não recebem a devida profundidade ao longo da trama, servindo apenas como alívio cômico dessa dramédia, o que aqui se faz mais do que necessário. Seus arcos são muito bem posicionados para ilustrar a forma como a vida de Benjamin é condicionada a eles, especialmente à figura do pai, com a ideia de ter como papel social seguir a profissão do mesmo. Ao passo que até o próprio protagonista não tem uma complexidade sobre sua história pessoal, numa perfeita representação do esvaziamento de sua identidade.
Embalado em sua própria melancolia, Selton Mello conquista o papel da sua carreira em O Palhaço, em frente e por trás das câmeras. Nascido e criado no meio artístico, o roteiro, coescrito por Marcelo Vindicatto, apoia-se num sarcasmo escancarado, que já fizera o ator ganhar risos do público em vários trabalhos anteriores. A estética agradável e simétrica dos cenários da obra, enlaçada com personagens pra lá de caricatos, seria digna de receber o título de um filme de Wes Anderson à brasileira, se é que o estadunidense teria a capacidade de dar origem a uma produção tão poética quanto essa.
Em meio a essa atmosfera meio Moonrise Kingdom, Benjamin se vê como um peão isolado na rotina do seu trabalho, que acaba por ser a mesma da sua casa. Desmotivado e destoando dos demais colegas, parte em uma jornada de autoconhecimento e o encontro da sua motivação, que ele mesmo não faz ideia do que pode ser. Ironicamente, o palhaço viaja para Passos para encontrar seu objetivo, que acaba por ser a mesma cidade de origem do ator que o interpreta, numa espécie de metáfora sobre a sua própria vida.
A conquista da liberdade individual e finalmente sua identidade (material e pessoal) parecem ser o início da satisfação completa de Benjamin, mas acabam por tomar o rumo oposto. O automatismo de seu trabalho unido a uma frustração amorosa apenas aprofundam a crise do personagem de Selton Mello, que se vê cada vez mais enclausurado em seu marasmo particular. A necessidade de explorar o mundo fora da bolha circense em que vivia não se torna uma viagem desperdiçada, e sim uma parte essencial para se encontrar.
A descoberta de sua individualidade também é transferida ao ventilador, que se torna um grande componente da narrativa. Em uma crítica subliminar ao sistema capitalista, o roteiro escancara a necessidade que criamos em ter objetos materiais como frutos de conquista em nossas vidas, além da liquidez e razoabilidade das relações modernas, ao ponto de que o mundo das artes torna-se uma redoma de escape da realidade fria e monótona.
10 anos depois, O Palhaço continua sendo um passeio necessário sobre autoconhecimento. A dignificação diretamente relacionada ao trabalho e as expectativas criadas pela sociedade, cada vez mais potencializados nos tempos modernos, tornam o filme de Selton Mello uma obra atemporal. Não há cargo, diploma ou medalha que traga satisfação maior do que a beleza de encontrarmos nosso lugar no mundo, aquilo que sabemos e queremos fazer.