Vitor Evangelista
Que o cenário político de House of Cards é caótico, nós sabemos. A primogênita do que seria uma grande leva de produções da Netflix nos mostrou como a política americana se ordena. Frank Underwood e sua esposa Claire tiram leite de pedra para conseguir poder; eles fazem o terror. Entretanto, com as acusações contra Spacey, o protagonista foi afastado e a plataforma de streaming deu o veredito: menos episódios, Claire toma os holofotes e a série acaba na sexta temporada. Com as tramoias e artimanhas da Casa Branca se esgotando, a Netflix decidiu virar a câmera para outro cenário extremamente desordenado: o do Brasil.
O Mecanismo chega com a força do nome de José Padilha, seu idealizador. Pai dos dois Tropa de Elite e de Narcos, Padilha é polêmico, não deixa nada subentendido e entrega ao publico uma produção ímpar. Uma realidade já retratada no longa Polícia Federal: A Lei é Para Todos, que agradou poucos. Dessa vez, ele decide contar a história, dividida em oito capítulos, pela versão dos policias envolvidos no início da Lava Jato. Selton Mello é Marco Ruffo, policial que deu origem à fagulha da operação. Ele trabalha ao lado de Caroline Abras, que interpreta a delegada Verena. A química entre os dois é ótima, há um grau de amizade explícito ali.
O grande tema trabalhado na série é o egoísmo das personagens, desde o diretor da Petrobrasil (rá!) que esconde dinheiro na parede até o juiz do Supremo que decide dar autógrafos após decretar prisões. Todo mundo quer ficar no centro da luz. Ruffo trabalha nas sombras, mas, na maior antítese da produção, é o que mais se move para o meio.
Verena se constrói com base nas relações que ela cultiva ao longo dos episódios: a amizade com Ruffo, o caso com o procurador do Ministério Público, a liderança com Vander (Jonathan Haagensen) e a submissão a seus superiores. Tudo isso faz da delegada a personagem mais calejada da série. A interpretação mais gratificante e, ao mesmo tempo, desesperadora é a dela.
Ruffo, porém, tem o arco mais abrangente. Ele trabalha com metalinguagem. Nos episódios dirigidos por Daniel Rezende, há uma trama paralela que envolve esgoto vazando e o conhecido “jeitinho brasileiro”. É ali que a série justifica seu título e o discurso que prega ao longo da produção. É um ciclo, e todos estão envolvidos.
Padilha e a roteirista Elena Soarez utilizam um recurso extremamente desgastante: a narração em off. Se usado em dosagem certa, dá um ar mais enigmático aos acontecimentos, mas, nesse caso específico, há exagero. Por puro desleixo, as personagens estão constantemente narrando tudo que já está em tela, julgando o espectador como lesado.
Outro ponto que incomoda em O Mecanismo é a tentativa da criação de jargões e frases de efeito (característica também evidente em Tropa de Elite). Ruffo fala sobre o câncer que o sistema politico brasileiro é, e que “não se pode combater um câncer impunemente”. A todo momento Verena, seu parceiro Vander ou até mesmo o doleiro Roberto Ibrahim (Enrique Díaz) soltam frases caricatas e que ninguém diria nesses contextos.
Ibrahim representa Alberto Youssef, o doleiro que deu o pontapé da Lava Jato. Juiz Rigo (Otto Jr.) é Sergio Moro, numa atuação que limita os próprios feitos e conquistas, o personagem reluta em abraçar o lado celebridade que tanto lhe almeja. O momento de aceitação de seu destino figura entre os melhores da série.
Outros dois que brilham em suas caricaturas do real são Lúcio Lemes e Mário Garcez Brito, o Mago. Lemes (Michel Bercovitch) é Aécio Neves, bêbado pelo poder em potencial e pelas descobertas contra a presidente em exercício. Ele quer a presidência para si ao fim das próximas eleições. O Mago (Pietro Mário) é o ex-ministro da Justiça, tramando a costurando um acordo que vai livrar a cara das empreiteiras. O tom de voz rouco e a poetização de suas frases são os grandes destaques da interpretação.
O Mecanismo foi alvo de críticas por sua falta de verossimilhança com o cenário político verdadeiro. A série inverte falas e busca pintar uma composição mais heroica, construindo seus heróis de peito estufado. Conta a história da maneira mais condizente possível com suas premissas e objetivos. Por isso, não venha aqui procurando o retrato falado do que aconteceu no Brasil pós-2010: O Mecanismo é entretenimento puro.
Outras produções trabalham de maneira menos alegórica o caos que se instaurou no Brasil. O Processo, documentário de 2016 da diretora Maria Augusta Ramos, mostra as duas semanas que antecederam o impeachment de Dilma Rousseff. Exibido no Festival de Berlim, ele não conta com entrevistas ou narrações em off. É um filme cru que visa a informação, e não o entretenimento.
Com todas as reviravoltas que sucederam o impeachment, ainda existe muita trama para O Mecanismo dramatizar e trazer ao grande público. Ainda mais com um certo vice-presidente descontente à espreita, pronto para dar o bote.