Raquel Dutra
O nome dele é Sam Ali e o nome dela é Kaouther Ben Hania, e a riqueza metafórica de O Homem que Vendeu Sua Pele (الرجل الذي باع ظهره) é o lugar perfeito para criatura e criador se aproximarem, ao mesmo tempo em que se distanciam completamente. É algo realmente complexo, porque o terceiro longa-metragem da cineasta tunisiana cresce em muitas direções enquanto suscita reflexões críticas sobre cultura, política, sociedade, ética e arte, traz visibilidade para o Cinema do eixo Oriente Médio – Norte da África e faz história no Oscar 2021.
Começando pelo Homem, o drama acompanha numa abordagem ácida e em pleno 2011 de Primavera Árabe a história de Sam Ali (Yahya Mahayni), um jovem sírio que é preso depois de deixar escapar evocações de revolução e liberdade em público num momento em que declarava seu amor por Abeer (Dea Liane). Além da implicação política, ele também encara uma emocional, já que a amada se encontra no lado oposto ao dele na pirâmide social e mesmo perdidamente apaixonada pelo vagabundo, tem um casamento arranjado com o diplomata Ziad (Saad Lostan).
Num momento de liberdade, Sam escapa com destino ao Líbano para tentar recomeçar a vida longe da tirania e perto de Abeer, que agora, já comprometida, mora na Bélgica com o marido. Em uma das andanças pela cidade, ele cai numa galeria onde o cultuado Jeffrey Godefroi (Koen De Bouw) expõe sua arte. Capturando imediatamente o olhar perdido do refugiado, o artista propõe-lhe algo irresistível: transformar seu corpo em uma de suas obras de arte valiosíssimas.
Agora continuando com ‘a mulher’, Ben Hania bate de frente com quem espera por um drama tradicional e procura por um mocinho na personagem de Sam. Com muito respeito por trabalhos que revelam a realidade de quem se arrisca mar afora porque as ameaças que encaram em casa são mais perigosas do que enfrentar o desconhecido apátrida, O Homem que Vendeu Sua Pele procura algo diferente.
Os olhos do jovem desamparado brilham com a proposta faustiana, que parece a representação mais fiel da plena liberdade que ele tanto almeja. Lembrando que estamos num capitalismo tardio, então aqui o ser livre não tem nada de conceitual e está diretamente relacionado ao dinheiro e poder econômico, algo que Ben Hania sabe muito bem, Sam vive na pele e Jeffrey faz questão de assegurar.
Acordo firmado, o objeto da concretização disso tudo não poderia ser mais significativo. A diretora e roteirista relaciona a promessa de liberdade de Sam com o Schengen, o visto que garante a qualquer um a livre circulação por grande parte da Europa. O único ponto é que ele não está disponível ao seu alcance e nem é 100% seu, mas se encontra tatuado em suas costas e com a assinatura de Jeffrey Godefroi.
Assim, o filme passa longe de uma linearidade moral. A personagem principal do filme só quer ser livre e viver o amor, mas sua busca por isso não é nada romântica. Sam, além de corajoso, sensível, ingênuo e determinado, é também deslumbrado, instável, egoísta e ganancioso. Na completude do ser humano para além das definições que podem surgir das condições de sua existência, O Homem que Vendeu Sua Pele se solidifica como uma história que transborda originalidade.
O que Ben Hania cria em sua obra é um registro muito atento da contemporaneidade e das nossas relações sociais, visível na forma como a diretora e roteirista reproduz na tela as dinâmicas Ocidente-Oriente, arte-sociedade, liberdade-identidade e dinheiro-vida. Não satisfeita em criar um estudo de observação social completamente firmado no chão do século 21, a cineasta adiciona seu tão comentado tom ácido e sarcástico ao filme, que transforma tudo em algo ainda mais incômodo e, ao mesmo tempo, palatável.
Tudo é paradoxal demais e é isso o que torna O Homem que Vendeu Sua Pele tão único. Estamos acostumados a assistir os absurdos da contemporaneidade de uma forma mais objetiva e concreta, mas não da maneira mais subjetiva e camuflada nas estruturas, especialmente das mais respeitadas, como a arte. Em nenhum outro lugar nós vamos encontrar um olhar tão cirúrgico, interseccional e escrachado sobre nossa própria existência. É o teatro dos absurdos, mas Ben Hania não cria nenhum deles, apenas os ilustra.
Junto da direção e roteiro, a instância que complementa isso é a performance de estreia inacreditável de Yahya Mahayni. O ator faz Sam Ali ir do Céu ao Inferno quando se lembra do amor que sente por Abeer e quando volta para sua realidade, que se mostra algo muito longe do que ele idealizava. É indiscutível também a química que Mahayni desenvolve com Liane para dar substância ao amor proibido dos jovens apaixonados, que aumenta a extensa lista de assuntos em que o filme toca ao longo de seus 110 minutos.
O mais surpreendente, no entanto, é a capacidade que Yahya Mahayni tem de nos convence de absolutamente qualquer coisa vinda de Sam. Não à toa o novato venceu o prêmio de Melhor Ator na mostra Orizzonti do Festival de Veneza pelo seu trabalho no drama de Ben Hania. Liderando o momento mais insano de todo o filme, quando depois de uma tensão gradual tudo parece prestes a explodir, Yahya põe O Homem que Vendeu Sua Pele para rir da nossa cara.
Mesmo que seu humor seja o seu pilar, O Homem que Vendeu Sua Pele não deixa de ser sério. A reflexão mais trabalhada no filme não é encarada com leviandade e a condução de Ben Hania é incisiva ao recriar um contexto em que a circulação de mercadorias é mais livre que a circulação de pessoas. Como um solicitante de refúgio, Sam não pode entrar na Europa. Ele tem mais valor no Ocidente como objeto do que como homem. Assim, se Sam se torna algo (uma obra de arte, no caso) ele se aproxima mais do que faz dele ser alguém (a liberdade e a humanidade), certo?
Errado. Porque o status de Sam como uma peça artística significa que ele pode ir a qualquer lugar do mundo onde for exposto e faz dele alguém preso à algo que existe nele mesmo. A personagem marginalizada, que frequentava galerias para encontrar o que comer, ascende socialmente e se transforma em um dos objetos de mais valor que elas podem possuir, além de também ser uma parte importante de museus de luxo, frequentador de hotéis cinco estrelas… Sam Ali é muitas coisas, menos uma pessoa.
Este é o único raciocínio fechado da trama, e ainda sim, é um labirinto que nos engole por horas, dias, e até semanas depois do fim do filme. O Homem que Vendeu Sua Pele compreende o preço de tudo e não trabalha o valor de nada, deixando todas as noções morais e éticas atordoadas. Mesmo assim, e talvez justamente por isso, o filme mora por muito tempo nos nossos pensamentos. Aqui está, mais um paradoxo.
No meio de tanta coisa, é natural que o filme se perca em alguns momentos. Também é natural questionar-se se de fato é ele quem se perde de nós, ou nós que nos perdemos dele. Existem argumentos para as duas coisas: a direção de Ben Hania parece intervir demais no andamento do filme com cortes incômodos que deixam uma sensação de que algo está faltando, mas a cineasta também tem uma intenção clara de dar um nó na nossa cabeça.
Para equilibrar, existe uma definição estética impecável. O Homem que Vendeu Sua Pele é um filme estiloso, conversando plenamente com a contemporaneidade que sustenta os caminhos tortuosos de suas entrelinhas. Na Europa, o filme cria a criticada energia degenerada com a luxúria dos tons de azul, roxo e vermelho em sua fotografia e composição artística. Já na Síria, o contraste existe em cenários empoeirados, cinzas e desesperançosos, inspirando também uma naturalidade da terra natal de Sam, que depois, irá revelar nessa mesma circunstância a sua violência.
Aqui é um bom lugar para lembrar que essa ousadia toda nasceu das mãos de uma cineasta árabe que é uma incentivadora assídua do trabalho de mulheres no Cinema fora do eixo EUA-Europa. Todas as vivências de Ben Hania convergem na capacidade que a diretora tem de recriar a radicalidade das relações de poder da nossa sociedade. Ilustrar tudo isso de uma forma tão natural e ainda brincar com os sentidos no meio do caminho, então… Só um olhar muito atento, inteligente e firme.
A primeira vez em que Kaouther Ben Hania repercutiu com sua crítica social na tela foi em 2017, com A Bela e os Cães. O drama fez sucesso no Festival de Cinema de Cannes e chegou perto da premiação da Academia, mas o maior holofote do Cinema mundial só foi brilhar em cima da mistura de drama e comédia de O Homem que Vendeu Sua Pele. Em 2021, a cineasta representa a Tunísia, o Cinema árabe, o norte da África, o avanço feminino e sua excelência visionária na seleção final dos indicados a Melhor Filme Internacional, em sua segunda tentativa de encontrar seu espaço na premiação da Academia.
A história é perturbadora e envolvente e poderia muito bem cair em algo grotesco, raso e bizarro, ou numa comédia desmedida, incômoda e irresponsável, ou num drama arrastado, enjoativo e até desrespeitoso. Mas não é definitivamente nenhum dos três. O Homem que Vendeu Sua Pele se equilibra, e o preço disso é não se comprometer com o esgotamento de seus debates. E talvez seja melhor assim, avisa o filme. Lembra que estamos no capitalismo contemporâneo? O recado é não esperar nada dele.
A leitura da cineasta é certeira mas magistralmente medida, e quem chega ao fim de O Homem que Vendeu Sua Pele nem sempre vai gostar do que vê e do trabalho que precisa ter para solucionar seus labirintos morais, éticos, políticos e pessoais. Mas este é o preço a se pagar pela capacidade analítica da obra de Ben Hania, e ao contrário do que seu personagem faz, ela não está disposta a negociar sua narrativa.