Vitória Gomez
Na tentativa de entender o Brasil da década de 1930, com as aspirações nacionalistas e a valorização da cultura brasileira, o sociólogo Sérgio Buarque de Holanda propõe a ideia do “homem cordial”. O conceito definia um cidadão movido pelo coração, afeto e pelo sentimentalismo em detrimento da razão, que extrapola o âmbito pessoal e o aplica no coletivo. Para Buarque de Holanda, essa seria a razão pela qual o brasileiro adota uma figura paternalista, familiar e passional. No entanto, é a mesma pessoa que se esconde por trás da face da cordialidade até que a hostilidade tome conta. Mais de oito décadas depois, O Homem Cordial busca a revitalização dessa ideia durante uma única e violenta noite em São Paulo.
Na trama, Aurélio (Paulo Miklos) é vocalista de uma banda de rock que fez sucesso nos anos 1980, mas, no show de reencontro do grupo, é linchado ao entoar canções de cunho social. Mais cedo, ele havia defendido um menino negro de uma acusação de assalto, que culminou na morte de um policial. O vídeo da abordagem viralizou e, de um lado, o artista é rechaçado pelo público, em defesa do suposto agente da lei. Do lado contrário, o menor de idade está desaparecido e não recebe a mesma comoção. Nas próximas horas, o personagem de Miklos enfrenta a pressão social, o radicalismo, a dor da família do garoto e, ele mesmo, a violência policial.
O Homem Cordial foi mais uma das obras brasileiras que sofreu com o atraso no lançamento: o filme estreou em 2019, mas só alcançou as telas nacionais em 2023. À época, o extremismo que permeava o país, fruto da recente eleição de Jair Bolsonaro, normalizava a barbárie e o ódio, sobretudo nas redes sociais. Afinal, é a partir de um vídeo viral na internet que Aurélio se torna o novo alvo de um grupo radical, que fará de tudo para culpabilizá-lo por ter o mínimo de humanidade diante da injustiça social.
Na produção, o linchamento, tanto ao cantor quanto à vítima, é o ponto de partida. A ação é simbólica em externalizar o ódio e preconceito (antes) contido e que, no governo passado, ganhava tons de normalidade em prol de uma falsa proteção à pátria e aos valores tradicionais. A situação em que o menino é repetidamente hostilizado acontece justamente em um bairro de classe média alta de São Paulo, onde sua presença é vista como ameaçadora. Ali, ele é culpado até que se prove o contrário – e nem assim.
Se tivesse sido lançado no ano em que estreou, O Homem Cordial assumiria um tom de urgência ao retratar uma parcela da sociedade que se sentia confortável com a violência, inclusive encorajada a usá-la como meio e fim – e tendo o aval das autoridades para fazê-la. Quatro anos e uma eleição depois, a história escrita pelo sociólogo e diretor Iberê Carvalho e pelo cineasta Pablo Stoll permanece relevante de ser discutida (com os ecos da eleição de 2018 e do que a seguiu, nunca deixará de ser), mas perde parte do seu impacto.
Resultado esse que, com o lançamento em seu devido ano, seria potencializado pela condução frenética da obra, já que horas de uma única noite são suficientes para levar a situação ao extremo. No decorrer da trama, Aurélio vai de um artista bem-sucedido em um show de reencontro a perder contratos e ser seguido por civis enraivecidos, defensores de uma autoridade criminosa. Quando uma jornalista o aborda para saber do paradeiro do menino desaparecido, ele se envolve na investigação jornalística e passa a, ele mesmo, ser alvo da polícia.
Na pele do ator e Titã Paulo Miklos, o musicista surge como uma tela em branco. As informações acerca de seu passado e do envolvimento com o acontecido vêm aos poucos, e somos inseridos na caoticidade junto do cantor – exceto que ele sabe do que tudo se trata. Com a breve contextualização, a atenção é dividida entre acompanhar o rumo do artista durante aquela noite e se situar no próprio espaço e tempo, uma vez que, durante a primeira metade do filme, a frenética câmera na mão de Pablo Baião nunca tira os olhos do personagem.
Experiente, Miklos não coloca o carro na frente dos bois, em uma performance reconhecida como Melhor Ator no Festival de Cinema de Gramado. O ator sabe como a banda toca e, mesmo com o desenvolvimento desordenado de seu protagonista, dá espaço suficiente para a trama prevalecer. O Homem Cordial é menos sobre Aurélio e mais sobre o contexto social e a própria cidade de São Paulo, que, segundo o próprio diretor, é uma dos personagens principais da história: a metrópole que nunca dorme está sempre de olho no que todos fazem e é impossível fugir.
É a partir do envolvimento com a família e a comunidade do menino desaparecido que o filme aprofunda a relação com o presente da época. Inicialmente uma narrativa sobre discursos de ódio e como as redes sociais criam um ambiente propício para a violência, que passa a se materializar na vida real, os roteiristas se viram obrigados a tratar também sobre o racismo, já que a normalização da barbárie tem impactos diferentes de acordo com o grupo étnico-racial e social.
Com Paulo Miklos, eles optam pela perspectiva de um homem branco. Por um lado, a escolha permite que nos coloquemos como espectadores da violência e não o alvo dela. Para os realizadores, aqui a intenção é discutir qual o papel da branquitude na luta antirracista, ponto no qual O Homem Cordial sucede: apesar da perseguição inicial, o linchamento de Aurélio após sair em defesa do menino vira o foco, enquanto a dor e dúvida da família quanto ao paradeiro do garoto não ganha nenhuma atenção. É só ao cutucar a impunidade da força policial durante a investigação jornalística que o musicista entra na mira das autoridades.
Por outro lado, o personagem de Béstia (Thaíde), um velho amigo do protagonista, lembra que “o mundo visto pelos olhos de branco devem ser lindos”. Afinal, Aurélio só se envolve com o caso depois de muita insistência e da perturbação de sua própria paz. O trunfo do diretor se apoia em justamente admitir que não entende a perspectiva do outro e, no final das contas, realmente vê o mundo por trás de seus privilégios até que estes são abalados, sem pretensão de equiparar a falta de sossego com a dor de uma família.
Sérgio Buarque de Holanda propôs a ideia do homem cordial em 1936. Quase uma década depois, a observação do conceito na prática soa pertinente – afinal, o filme partiu do episódio de linchamento do seu descente direto, Chico Buarque. Inegavelmente a obra foi prejudicada pela dinâmica de lançamento, que já submeteu outras produções brasileiras à mesma condição e chegou sem o senso de urgência que a própria história almeja. No final, O Homem Cordial soa como um estudo de anos passados, mas também como um alerta: não nos livramos de nada e a parcela da sociedade que normaliza a selvageria está sempre à espreita.