Alerta de gatilho: violência explícita, morte e luto
Marcela Lavorato
O Cemitério plantado por Stephen King colhe frutos há 40 anos. O motivo é simples: o livro é uma descrição minuciosa dos sentimentos humanos em torno de um fato que não nos é explicado, mas que esperamos vir inevitavelmente ao longo da vida – a morte. Na verdade, a morte não é algo simples, mas percorre a base do natural e do orgânico, algo que já nascemos com ela, pois sabemos que um dia irá acontecer, mas nunca esperamos ser tão cedo. A narrativa de Pet Sematary – título original -, portanto, abre portas para tramas brutas e reais que fazem o leitor experimentar todos os sentidos ao ler essa obra-prima do terror.
O enredo, em sua grande maioria, ocorre no Maine, estado localizado no extremo nordeste dos Estados Unidos. A história se inicia a partir da mudança de Louis com a sua família – Rachel, a esposa, Ellie e Gage, os filhos, e Winston Churchill, o gato de Ellie – para a cidade de Ludlow, na qual o protagonista consegue um emprego de médico na Universidade do Maine.
O começo já apresenta uma narrativa densa por causa dos acontecimentos que surgem a partir da chegada à nova residência. Perda de chaves, choros de cansaço e estresse, picada de abelha, machucado no joelho: tudo isso antes mesmo de entrar na casa. Nesse momento, é sentido, na atmosfera da narração que o local não quer os novos moradores lá. A partir daí, é que se desenvolve a história entre Louis Creed e Judson Crandall, um senhor de 80 anos que vive do outro lado da rodovia. É através dessa amizade que o livro percorre a sua trama tenebrosa.
O Cemitério, no decorrer da parte um, é mais lento e demorado para apresentar as consequências dos atos de Louis ao longo da narrativa. Porém, já na parte dois e três, toma um ritmo frenético. São diversos acontecimentos ao mesmo tempo, transparecendo a ideia de que o leitor tem que saber dos fatos custe o que custar. Com essa premissa, Stephen King é primoroso com as palavras e nos remete muito ao conceito machadiano do descritivismo. Descrição é o que não falta no livro – traduzido por Mário Molina e lançado pela Editora Suma – e é nela que está impregnada o que o escritor quer passar através da escrita. Seja em cenas de comemoração ou violência, a imaginação floresce por meio dos detalhes que nunca são demais – ou até são, em certos momentos – para o clima da história.
No decorrer do livro, depois do primeiro encontro de Louis e Jud, o convívio cresce e, entre uma cerveja e outra, a cumplicidade aumenta. Jud é um senhor que viveu sua vida inteira naquele lugar e, portanto, sabe muito bem o que acontece na cidade. Todo esse conhecimento é passado para Louis, ele querendo ou não. A narrativa que inicia a história sobrenatural da trama é um cemitério, ou melhor, um ‘simitério’ de bichos, localizado em uma trilha dentro de seu terreno. O local é a representação da curiosidade materializada nesse cenário nebuloso. Em torno dali, há uma passagem obstruída para algum lugar e que se mantém inacessível até um fato importante para o encaminhamento da história.
A questão da escrita errada da palavra cemitério parece ter um motivo maior do que ser somente um singelo erro. O engano chega a ser irônico: parece que está lá para sempre lembrar do cemitério e no que há além dele. A partir dessa concepção, a narrativa caminha para culminar ao ponto de Louis conhecer realmente o que há do outro lado. Esse momento é bastante significativo para entender o porquê somente Crandall e Creed sabiam desse ponto. A partir disso, é o momento no qual Jud leva o médico para o outro lado do ‘simitério’ dos bichos e alguma coisa chamava-os para desfrutar as terras de lá. Ao decorrer do bosque, algo que transcende o real está inserido no ambiente e a euforia cresce durante a passagem da floresta até a chegada a um outro cemitério, da comunidade indígena micmac.
Um ponto interessante é que havia uma espiral desenhada no chão rochoso. O símbolo vai contra a premissa da vida – que tem um começo e um fim. Na obra, ela se baseia em algo interminável e vicioso, assim como Jud contou a Louis sobre o cemitério, como Stanny B. contou para Jud e como o pai de Stanny B. contou a ele. É um ciclo inquebrável. E é através desses simbolismos que o livro vai sendo construído.
Durante a história, Creed é percorrido por diversos momentos que o alerta para não atravessar a fronteira do cemitério, desde o aviso que recebeu do universitário que morreu no seu primeiro dia de trabalho até o sonho muito vívido em que o morto o alertava de não passar por aquelas madeiras. O território, além de estar impedido de entrar, é um lugar que deve ser respeitado e o descumprimento dessa ordem afetaria a sua família. Mesmo assim, ele não se importou, seguiu em frente e fez o que não podia. A partir dessa tomada de decisão, a loucura se inicia.
O conhecimento do cemitério dos bichos serviu de amadurecimento para alguns ou de loucura para outros. Ellie entendeu que seu amado gato poderia morrer em qualquer dia e teria que lidar com o luto. Porém, Creed, que conhece um lugar além do natural, sabe muito bem do controle que precisa ter para não sofrer uma dominação (que vai acontecer, em algum momento).
Ao longo da obra, o homem sofrerá inúmeras intercorrências que o deixarão entre a racionalidade e a insanidade. O ponto é que o personagem se deixa levar pelo poder daquele lugar e perde o controle de si mesmo e da realidade. O aviso foi dado, mas ele o descumpriu. E esse é o momento no qual a compaixão do leitor é bastante estimulada para fluir entre os seus próprios dilemas sobre as consequências das ações tomadas.
O enredo construído por King é atemporal e está longe de ser algo datado. Todas as narrativas ali transpostas tratam de algo humano, carnal e não importa a época na qual foi escrito, as sensações transpassam a linha do tempo. Seja uma leitura feita em 1983 ou em 2083, aquele que lê terá a mesma angústia. Esse fato torna o livro ao mesmo tempo simples e complexo, e Stephen King traduz sentimentos em palavras – tão cruas – que é preciso em alguns momentos se dar uma pausa. Isso é tão grandioso que demonstra o quão profundo é o desenvolvimento das diversas histórias ali criadas. Assim, é possível entender o impacto no mundo do terror até nos dias de hoje e que reverberam, principalmente no audiovisual. Mesmo as últimas adaptações não serem do agrado do público – por diversos motivos -, é importante relembrar que mais uma adaptação de O Cemitério chegou em 2023.
Além disso, no desenrolar da história, King discorre sobre questões que são pertinentes até atualmente, mesmo que não as explore muito. Uma delas é o caso do território indígena dos micmacs, os quais, na narrativa, estão reivindicando suas terras contra o Estado. A apropriação desses lugares pelo Governo reflete na atualidade e de como a colonização tem como resultado o genocídio dos povos originários, suas culturas e seus ideais.
Então, O Cemitério celebra seus 40 anos com muitos triunfos e se consagra com uma história repleta de morte, sangue, luto, raiva, desespero, angústia e cemitérios, transmitindo tudo isso da forma mais magistral: atiçando a curiosidade do leitor e fazendo com que continue a experiência, mesmo esta sendo a mais mórbida possível. Stephen King, que só releu a obra depois de 20 anos (ela quase não foi publicada por ser muito tenebrosa), mostra que a sua fonte de criação é algo que sempre se mostrou original e não se encontra por aí com facilidade.
O solo do coração de um homem é mais empedernido, Louis — murmurou o moribundo. — Um homem planta o que pode… E cuida do que plantou. Louis, ele pensou, nada ouvindo de forma consciente depois do próprio nome. Oh, meu Deus, ele me chamou pelo nome.