Davi Marcelgo
Franquias em Hollywood não faltam, tem para todo tipo e gosto. Mas o que acontece quando elas, ou até mesmo um gênero, se tornam um pesadelo? Quando em 1984, o primeiríssimo A Hora do Pesadelo estreou, mal sabia Wes Craven que, dez anos mais tarde teria, que desconstruir sua maior criação: Freddy Krueger. O Novo Pesadelo – O Retorno de Freddy Krueger (1994) completa 30 anos em 2024 com muita coisa a ensinar ao Cinema, principalmente ao de super-heróis.
Além do primeiro e último filme (até 1994), a saga teve outras cinco sequências, todas com outros diretores, algumas com outros protagonistas e uma que até ignora o original. Chegou um momento em que o título original, A Nightmare On Elm Street (algo como O Pesadelo da Rua Elm, em tradução livre) perdeu sentido: a rua nem era mais a protagonista. O local onde os jovens de 1984 viviam é de suma importância para narrativa; a residência que deveria ser lar de proteção é inseguro, namorados e amigos moram em frente, as relações entre os personagens e o público são dependentes da geografia.
Os personagens deixaram de ser filhos dos responsáveis pela morte de Krueger (Robert Englund) e, cada vez mais, os longas entravam em uma espiral de novos conceitos mirabolantes e cenas de ação (não mais Terror) cada vez mais absurdas, tudo para, de alguma forma, manter-se relevante e cativante ao público. Diferente de outros assassinos slasher, subgênero que sofreu com um tremendo desgaste nas décadas de 1980 e 1990, os filmes do ‘bicho-papão’ não são de todo mal. O quarto filme possui uma atmosfera teen maravilhosa, que combina bem com o fim dos sonhos – afinal, quem mais aspira do que adolescentes? –, e, com todo teor gay, o segundo, apesar das polêmicas, é excelente. Ainda com acertos, os pesadelos ficaram piores e desconectados do que um dia foi a rua Elm.
Depois de tanta profanação, como fazer do pesadelo um sonho? Wes Craven achou a saída na metalinguagem. Transformou A Hora do Pesadelo em um mero filme dentro de outro filme, e a protagonista Nancy (Heather Langenkamp), na verdade, é Heather, uma atriz de Hollywood. Na trama, ela convive com intensos terremotos e ligações ameaçadoras, a situação se agrava quando seu filho começa a ter crises de sonambulismo.
Ao longo das sequências, Krueger virou um ícone da cultura pop, e passou de vilão para um personagem ácido e carismático. Quando Wes Craven deu à luz ao ícone, ele havia atribuído tais características, porém, ainda parecia apavorante. A partir do terceiro filme não mais tememos os pesadelos, mas ansiamos para vê-los. Então, o diretor e roteirista decide repaginá-lo.
Em O Novo Pesadelo, ele perde a ‘malemolência’, agora, é malvado em sua totalidade, como um fenômeno da natureza, definido por nascença. Além de mudar a aparência, Craven aposta em uma direção que esconde o personagem. As aparições, em primeiro momento, se garantem em garras saindo do lençol e sentimos a presença de Krueger através de sonhos e elementos familiares, como a cena em que a criança tem facas de cozinha encaixada nos dedos. Quando ele finalmente aparece, é filmado com muita imponência. Ali, o ícone ressuscitava.
A estratégia de descrever uma obra por si mesmo foi utilizada, mais uma vez pelo diretor, dois anos mais tarde, no célebre Pânico (1996), que também crítica o desgaste do gênero. No entanto, não é ‘só’ isso que é motivo de êxtase no último filme da rua Elm dirigido por Wes Craven. Branca de Neve, Chapeuzinho Vermelho, todos contos de fada que você já leu, ouviu, assistiu e sabe se lá mais o que fizeram com eles, também se tornaram banais, fato é que perderam até o tom macabro pós-adaptação da Disney. O cineasta, então, permite fazer de Freddy Krueger como um conto, capturado por ele e usado tantas vezes que perdeu o sentido e o medo. Só quem poderia sentir medo seria uma criança, que nunca tivera antes contato com esse personagem. Nessa hora, Dylan (Miko Hughes), filho de Heather, entra na história.
O papel inverte, Heather agora é a mãe que precisa proteger, não mais ser protegida. Nessa tarefa, a nota dela é dez. No que pode ser considerado como um dos grandes momentos do filme, ela confronta médicos que a julgam de louca, mas é ela quem entra no mundo dos pesadelos para salvar seu filho. Em uma bela alusão ao conto João e Maria, dos irmãos Grimm, que é lido por ela antes de pôr o menino para dormir, eles conseguem, juntos, enfiar Krueger no forno.
Wes Craven entende que, para novamente provocar medo, é preciso voltar às origens, no que provocava medo no passado e o que faz o público fazer xixi nas calças: a relação de mãe e filho parece uma boa pedida. Uma mãe que luta e acredita em seu filho. Nada adianta sonhos megalomaníacos se a conexão de espectador com personagens seja escassa, inclusive, todas as sequências oníricas do filme nem passam perto da loucura dos filmes anteriores. São mais sutis e simples.
Tal movimento sobre o gênero se repete agora com o de super-herói. O número de produções ao ano aumentou desde o pré-histórico X-Men (2000), assim, o público caminha para uma certa saturação – ainda que alguns filmes alcancem uma bilheteria grande – e as histórias ficam cada vez mais maximalistas. Porém, com a repetição formulaica e visando somente lucro, a potência desses atos ficaram vazios. Um raio azul em Nova York é só um raio azul; um primeiro voo é só um voo; vestir o traje é vestir pijama. Assim como o slasher perdeu o poder de apavorar, os heróis não encantam.
Deadpool (2016) fez uma espécie de crítica aos arquétipos e clichês dos filmes, mas nada tão a fundo quanto Deadpool & Wolverine (2024) fez ao esbanjar da metalinguagem e auto referências de estúdios. O fato é que Shawn Levy, o diretor, não é Wes Craven. A função linguística é usada por mero fanservice, não para discutir como está o gênero e para onde ele vai. Os poucos filmes que deram certo na leva pós Vingadores: Ultimato (2019) foram justamente os que tinham um certo coração, de personagens com vínculos entre si e com público, como Guardiões da Galáxia Vol.3 (2023).
Coincidentemente, James Gunn, diretor da trilogia cósmica da Marvel, está no comando de Superman (2025) e, talvez, este filme seja a resposta para o desgaste de gênero de super-herói. Retornando às origens, ao Superman: The Movie (1978) de Christopher Reeve, a inocente cueca por baixo da calça, aos pets, às histórias sinceras e não cínicas ou pessimistas. Por ironia do destino, Pânico já está cambaleando e sofrendo dos mesmos efeitos que um dia Hora do Pesadelo sofreu.
A metalinguagem não é mais novidade e a graça de adivinhar quem é o ghostface já virou conto de natal. Guilherme Leal, redator do Persona – olha aqui a metalinguagem –em sua crítica sobre Pânico 6 (2023), diz que “seria bom dar um descanso a sua imagem e deixá-lo se aposentar como um personagem icônico em vez de torná-lo maçante e superficial”. Era esse o sentimento na década de 1990, antes de O Novo Pesadelo. Infelizmente, Wes Craven não está mais entre nós para tirar sarro de sua própria criação e movimento, porque ele sim iria garantir ao seu público fiel, a pior noite de sono de suas vidas.
É como se o gênero tivesse nascido com ele. Afinal, desconstruir sua maior criação, deixá-lo de cara limpa e, ainda assim, manter a curiosidade, o suspense e a tensão na trama, ao mesmo tempo que critica a indústria – sobre fenômenos que acontecem ainda hoje – enquanto equilibra todos esses elementos em um filme que não deixa a ‘peteca’ cair, não é para qualquer um.
O cineasta intensifica os tormentos porque entende o Terror, o buscando nas origens e nas primeiras histórias que apavoram crianças. Acima de tudo, tal como uma criança chama de madrugada pela mãe, Wes Craven sabe que apenas quem nos ama pode nos tirar do pior pesadelo. Hollywood precisa olhar para as origens e traçar novos caminhos, aprender com Wes Craven, que sempre amou o Terror e foi um dos responsáveis pela solidificação do gênero nos EUA. Chegou a hora de chamar o pai.