Caroline Campos
A memória de um país só existe através da memória de seu povo. Pelas lembranças e histórias que são passadas de geração para geração, um país vai se construindo culturalmente. Exibido na 44ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, Nadando Até o Mar se Tornar Azul entende e homenageia a importância de seus relatos geracionais na composição da China, país de origem do consagrado diretor Jia Zhangke – que, também, criou o pôster oficial do festival deste ano. O documentário pertence à seção Perspectiva Internacional e, ao longo de seus 111 minutos, nos aproxima da cultura chinesa e sua história.
Dividido em 18 capítulos, o longa conta a trajetória da sociedade chinesa desde 1949, com 4 figuras principais na linha de frente – enquanto Duan Huifang narra as memórias de Ma Feng, escritor, ativista e seu pai, já falecido, três escritores chineses, Jia Pingwa, Yu Hua e Liang Hong, completam a narração. O ponto de partida foi o grande encontro literário de maio de 2019 ocorrido na província de Shanxi, terra natal de Zhangke. Sua direção é majestosa, nos conduzindo de forma certeira para cada figura em tela, sem conseguirmos desgrudar o olho e o coração de suas histórias.
No entanto, de início, é difícil ingressar no ritmo da produção. Zhangke possui um jeito próprio de direcionar seu filme e demora uns bons minutos para nos acostumarmos com a escolha narrativa da vez, pulando de personagem para outro, sem muita cronologia. É uma obra contemplativa, com muitas cenas focadas unicamente nas expressões faciais e corporais de visitantes da província, viajantes, agricultores e familiares. Às vezes, tal contemplação extrema se torna um pouco cansativa, mas, logo depois, nos habituamos com as decisões do cineasta.
As culturas chinesas, tradicional e moderna, se cruzam e se desdobram nas vozes dos escritores – cada um nascido em uma década entre 50, 60 e 70. O encontro de gerações nos permite analisar o panorama da vida no país com Mao Tse Tung e sua Revolução Cultural e seus efeitos político-sociais na trajetória de cada um dos nomes da literatura. Apesar disso, a memória histórica da sociedade divide espaço com a memória pessoal dos convidados, sempre se completando e se confrontando.
Os capítulos de Liang Hong, do 12 ao 17, são particularmente tocantes. Hong compartilha com os espectadores assuntos de demasiada dor e sutileza que envolvem seus familiares já falecidos e sua relação com os filhos, inclusive uma cena bela e paradoxal entre o velho e o novo de Hong ajudando seu menino de 14 anos a relembrar o dialeto de sua província natal, Henan. Hong é uma mulher de muitas facetas, e o longa nos dá uma prévia da profundidade de algumas delas.
Em contrapartida, a animação com que Duan Huifang fala sobre a história de seu pai, Ma Feng, é de encher os olhos. Com um grande sorriso no rosto, a mulher analisa cada passo da vida do ativista enquanto gesticula abertamente para a câmera no terceiro capítulo de Nadando Até o Mar se Tornar Azul, que leva o nome do homenageado. Jia Zhangke soube programar cada sensação para o espectador de seu filme, intercalando relatos curiosíssimos sobre a China com trechos de livros dos escolhidos, entre os capítulos, declamados por outras figuras em cenários bem construídos.
O filme, Yi Zhi You Dao Hai Shui Bian Lan, no original, foi exibido no Festival de Berlim e já era esperadíssimo para esta edição da Mostra – merecidamente. O ápice da colagem de rostos e trechos do cineasta está especificamente no capítulo 6, Som, que mais exibe o encontro literário entre escritores e acadêmicos. Com uma sinfonia de vozes, o trecho nos fisga pela sua velocidade e variedade de frases e declarações no palco do evento, enquanto pequenos flashes transicionam de um convidado para outro.
Nos 70 anos da Revolução Comunista Chinesa, Zhangke escolhe por filmar o encontro da nova e da velha geração que construíram e constroem o país através de suas memórias. Nadando Até o Mar se Tornar Azul é uma homenagem à literatura e a mudança de realidade que ela permite, assim como seu poder de enfrentamento a situações opressoras. Afinal, não é a toa que ditadores queimavam e perseguiam livros. Um livro não é nada sem um leitor, e, enquanto houver histórias para contar e alguém para ouvir, uma Nação vive – sempre caminhando na direção do azul do mar.