Vitor Evangelista
A era das grandes comédias da Televisão aberta está chegando ao fim. Enquanto os anos 2000 geraram longas produções, que facilmente alcançaram a lendária marca dos cem capítulos, as décadas de dez e vinte cumpriram a solene tarefa de findar essas jornadas. Quando o assunto é sitcom estadunidense, pode ter certeza que Chuck Lorre está no meio, e com Mom a história não é diferente. Dando adeus após 8 temporadas, a série guiada pelo encanto de Allison Janney enfim acabou.
Parte fundamental de se manter por tanto tempo na grade americana repousa na capacidade metamórfica dessas comédias de 21 minutos semanais. Além da arquitetura de enredos compridos e que ligam seus anos, são necessárias tramas menores, episódios-garrafa e uma construção de empatia entre público e conteúdo. Afinal, não há maior combustível para a renovação do que o amor de quem investe tempo na história, se considerando parte das pessoas que assistem religiosamente.
Mom começou em 2013, no crepúsculo de Two and a Half Men e no eclipse de The Big Bang Theory, os dois maiores sucessos de Lorre. Dessa vez, com mulheres no centro da narrativa, Lorre criou, ao lado de Eddie Gorodetsky e Gemma Baker, um veículo para o talento de duas atrizes opostas. Anna Faris, à época acostumada com o pastelão cômico de Todo Mundo em Pânico e A Casa das Coelhinhas, e Allison Janney, uma artista camaleônica, que triunfa em qualquer jaula de jacarés em que é jogada.
A narrativa mostra, é claro, uma mãe (Farris) em conflito com seus filhos. O clima geracional era ambientado com o retorno da mãe dessa mãe (Janney), uma mulher inconsequente e que muito traumatizou a filha, por conta do alcoolismo e do vício em drogas, herdados em uma poesia triste e que movimenta o ínicio da primeira temporada. Christy Plunkett é mãe de dois adolescentes, tem uma relação conturbada com o ex-marido inconsequente e agora precisa lidar com Bonnie, que reaparece anos depois de cortar laços.
Aos trancos e barrancos, mãe e filha frequentam reuniões do Alcoólicos Anônimos, criam uma poderosa rede de apoio e rumam em direção a uma vida ainda caótica, mas sem as bebidas e as drogas. Sóbrias, as garotas Plunkett foram despejadas, arrumaram novos empregos, novos amores e brigaram um bocado, mas o fizeram juntas e unidas, reconstruindo uma vida inteira de erros e descasos. As temporadas, que contam com uma média de 22 episódios, se encarregam de mostrar na prática o quão mutável e irreversível é a imprevisibilidade da vida.
Ao lado de um grupo de amigas que acaba virando uma família escolhida, Mom ficcionaliza o melhor cenário possível: aquele onde as pessoas aprendem com seus erros e crescem. Sem pesar a mão no otimismo que ronda as produções da era do streaming, Chuck Lorre manipula situações verdadeiramente arrasadoras, mas que são combatidas com a resiliência de um sexteto de mulheres que se apoiam e se amam incondicionalmente.
Por conta desse clima tão amigável, foi estranha a notícia de que Anna Faris, protagonista da série, sairia do elenco na oitava temporada. Pouco tempo depois, foi anunciado que este ano oito seria, obviamente, o conclusivo para o show. Sem os fracassos de Christy despejando cenas de choro e frustração no roteiro da CBS, a série precisou realinhar seu foco e colocar Bonnie, de uma vez por todas, no centro da pintura. Para isso, o grupo de amigas ganhou posto de co-protagonista, enriquecido pela lacuna narrativa.
Marjorie, papel da calma porém durona Mimi Kennedy, é a bússola moral das amigas. A idosa dona de uma dezena de gatos foi presa, perdeu o contato e o respeito do filho, mas mantém uma porção de afilhadas no A.A., e é a responsável por servir o chá de bom senso ao resto do grupo. No ano final, Marjorie lida com a morte do esposo Victor, e Mimi Kennedy é uma atriz que transborda a simpatia necessária para esse tipo de interpretação.
Jill é a pilha de nervos do grupo, e o olhar ligado no duzentos e vinte de Jamie Pressly transmite com facilidade a energia da personagem, uma ricaça com problemas no antigo casamento e que tenta, ao longo de toda a série, engravidar e construir uma família. O iô-iô que Jill joga para lá e para cá no namoro com o policial Andy (Will Sasso) rende alguns dos melhores capítulos do ano oito, e os atores dominam o timing cômico ideal para qualquer um dos enredos que Mom os serve.
Wendy (Beth Hall) ainda serve como o fim mais fácil e preguiçoso da porção de patadas da série, mas a personagem ganha o suspiro de um arco próprio nesta reta derradeira. A grande surpresa da nova era de Mom é Tammy (uma inspirada e deliciosa de se assistir Kristen Johnson). Irmã postiça de Bonnie na infância, a loura apareceu brevemente no fim da quinta temporada, como uma detenta raivosa e disposta a se vingar da mulher que a apresentou ao mundo das drogas.
Integrando o elenco regular a partir do ano seguinte, Tammy sofreu uma bem-vinda metamorfose, e todo seu senso de raiva adormecida se transformou na benevolência juvenil de uma mulher à beira de um ataque de nervos. A química entre Johnson e Janney possui o tchan extra e transforma as cenas de Tammy e Bonnie num show à parte, que não hesita em dar uma chance às segundas chances. Mais que uma série sobre vícios e a reconstrução depois das drogas, Mom desata a nos mostrar o crescimento natural de mulheres quebradas, mas não destruídas.
Além do agora quinteto, quem movimenta e muito o núcleo familiar adorável de Mom é Adam, o marido de Bonnie, interpretado com um afago devasso por William Fichtner. O personagem foge do arquétipo exaustivo da pessoa que usa cadeira de rodas depressiva e coitadinha, mas a escalação de Fichtner no lugar de um ator PcD levanta a questão da representatividade na TV. E Mom não desvia dessa bala, considerando que todo seu elenco principal é formado por pessoas brancas.
As duas personagens negras que aparecem com destaque na história (vividas por Octavia Spencer e Yvette Nicole Brown) servem de apoio aos dramas das mães protagonistas e nunca ganham sustância ou importância para além de serem auxiliares e facilitadoras narrativas. Questões relacionadas à sexualidade, como a atração que Bonnie e Christy sentem por mulheres, são vistas como motivo de piada e fetiche, provando que o machismo impregnado na mansão de Malibu de Charlie Harper e no apartamento geek de Leonard e Sheldon também se alastrou para os sets de Mom.
Ao longo de oito anos, Mom somou 13 nomeações ao Emmy, ganhando 2 vezes na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante em Série de Comédia com Allison Janney, em 2014 e 2015. A veterana da Academia, vencedora de 7 dos 15 prêmios que concorreu, ainda conseguiu mais uma menção em Coadjuvante antes de se submeter como protagonista, indicada em 2017, 18 e agora em 21. É óbvio que suas chances de gritar tri são quase nulas. Competir com a ferocidade fresca de Jean Smart e Kaley Cuoco não é tarefa fácil, mesmo para alguém com o invejável prestígio de vencedora do Oscar por Eu, Tônia. Na 73ª edição do Emmy, Mom escolheu momentos decisivos para se enfiar na briga.
Como já virou costume com grandes comédias se despedindo (vide Modern Family e The Big Bang Theory), Melhor Direção guardou uma vaga para James Widdoes e seu Scooby-Doo Checks and Salisbury Steak, décimo sexto episódio do ano, e extremamente focado em conclusões para a porção de personagens da sitcom. Na categoria de Montagem em Série de Comédia com Múltiplas Câmeras, Joe Bella concorre pelo mesmo Scooby-Doo. Allison Janney, por sua vez, apelou e submeteu a series finale de Mom como sua fita na disputa de Melhor Atriz em Série de Comédia.
No capítulo em questão, o emotivo My Kinda People and the Big To-Do, Bonnie percebe que já sofreu tudo que tinha para sofrer e pode, depois de uma vida de percalços e punições, aproveitar a mediocridade da felicidade definitiva. Por isso, o roteiro teima em atirar-lhe pepinos escorregadios e encurralá-la em cantos pontiagudos nas diversas discussões que partilha com o marido e as amigas. Na tentativa de exaurir qualquer núcleo de teimosia e intriga, Mom se despede da TV equiparando felicidade e conclusão.
Mom acabou, que pena. Parte da jornada é o fim, mas o tchau choroso a uma série tão rica, tão inteligente e tão subestimada é mais dolorido do que deveria. O final não é triste, Mom como um todo é. O final tampouco é aguado, apressado ou mesmo “conclusivo”. Na última reunião dos Alcoólicos Anônimos que temos o prazer de participar, uma nova dinâmica de mãe e filha nasce aos moldes daquela de 2013.
Se formos viver em ciclos, que sejam, ao menos, bons ciclos. Deslizes não nos definem, erros não nos definem. Mom anota seu ponto final com a leveza de quem contou histórias humanas sem a necessidade de julgamento ou aversão, da maneira exata que uma série de comédia, que ia ao ar às quintas da CBS com o gostinho de TV aberta e aspereza clássica de uma titã chamada Allison Janney, deveria contar. Mom acabou, mas viveu o suficiente para se tornar celebrada.