Mariana Nicastro
“Lembra-te que és pó e ao pó voltarás” – Gênesis 3:19. Muitas coisas são capazes de nos cegar. Amor. Raiva. Medo. Fé. Há tempos a busca por verdades absolutas, que acalentam as vidas humanas, desencadeiam na criação de mitos e religiões. Mas e quando eles ultrapassam seus objetivos fundamentais e obstruem nossas noções de bem e mal? E quando afetam nossos valores, princípios… Nossa humanidade? Esses são alguns dos questionamentos abordados em Missa da Meia-Noite, série de horror original da Netflix, lançada em 24 de setembro de 2021.
Escrita e dirigida por Mike Flanagan, a minissérie de 7 episódios se consagra como o mais novo xodó dele – e de seus fãs. Conhecido por adaptar, de forma habilidosa e criativa, histórias já existentes do horror clássico como em A Maldição da Residência Hill e A Maldição da Mansão Bly, dessa vez, Flanagan apresenta uma narrativa completamente original. Ele se inspira principalmente em dúvidas e medos que tinha quando jovem. Muitos envolvendo a fé. Essa ideia, junto de seu olhar inventivo para o Terror psicológico, resulta na ousada Midnight Mass.
O cenário de nossa história, quase em sua totalidade, é a Ilha Crockett. Isolada do resto do mundo, ela está coberta por uma nuvem de frustrações, traumas e medos. Em situações maquiadas, principalmente, com tradições religiosas, responsáveis por influenciarem fortemente os costumes e valores da ilha. Cinzenta, misteriosa e solitária, formada por seus 127 habitantes, ela é o cenário perfeito para uma história de horror. Daquelas na qual o mal ronda o ambiente e se alimenta de seus moradores, se materializando das mais diversas formas.
Dentre esses habitantes, estão os personagens que compõem os diferentes núcleos pelos quais o roteiro transita. Riley Flynn (Zach Gilford), e sua família protagonizam a história em um primeiro momento. A trama tem início com seu retorno à ilha onde cresceu, após cumprir sua pena na prisão por causar um acidente com drásticas – e traumáticas – consequências. Simultaneamente, outra figura misteriosa é convidada a visitar a área e ela leva consigo dádivas e condenações.
Além de Riley, a história nos apresenta a Erin Greene (Kate Siegel), ao padre Paul (Hamish Linklater), Bev Keane (Samantha Sloyan) e outros personagens interpretados por um elenco sempre presente nas criações do diretor. Tratam-se de figuras complexas e interessantes, responsáveis por conduzirem os demais arcos da série.
Esses arcos são construídos com os crescentes mistérios que rondam o local e seus moradores. Como o ataque brutal, e repentino, a animais e uma sucessão de milagres, que despertam a pequena população de sua habitual monotonia e desencadeiam uma investigação, liderada pelo Xerife Hassan Shabazz (Rahul Kohli).
Erin é responsável por abordar diversos questionamentos filosóficos e conduzir grande parte da carga dramática da obra, com uma impecável atuação da musa – e esposa – de Flanagan. Paul Hill, o misterioso e carismático padre recém-chegado, apresenta-se como um dos maiores enigmas da história e é capaz de envolver e abismar o telespectador com sua intensa convicção e dualidade. Quanto ao papel de Samantha, cabe dizer que ela o entrega com tanta perfeição, que odiamos Bev Keane com todas as forças, enquanto admiramos Sloyan por esse feitio.
Longos e marcantes diálogos – ou monólogos – perduram por toda a série, assim como os espetáculos de atuação. As razões da existência humana, vida após a morte, fé, fanatismo, preconceitos e dogmas religiosos são assuntos delicadamente abordados por Flanagan. Ele trabalha diferentes perspectivas, de forma emocionante e reverente. Como durante uma intensa conversa entre Erin e Riley, na qual surgem duas diferentes respostas à pergunta “para onde vamos quando morremos?” e ambas são capazes de emocionar e sensibilizar tanto a seus falantes, quanto a nós, meros observadores, que ali nos vemos representados.
Reflexões desse tipo, e o foco nos dramas pessoais vividos em Crockett, podem até passar uma sensação de vagarosidade para quem busca características comuns de um Terror sobrenatural, mais instantâneo e óbvio. A série, de fato, leva um tempo para mergulhar nesses aspectos. Mas mesmo que diminua seu ritmo em alguns momentos, com a finalidade de transmitir suas mensagens, ela sabe dosar o tempo que gasta com essa ação. E logo, retoma o andamento do suspense e mistério, jamais os abandonando.
Dúvidas, medos e problemáticas são trabalhados com uma sensibilidade e cuidado previamente evidenciados em outras produções do diretor. Ainda assim, Missa da Meia-Noite difere das demais com sua originalidade, mesmo que Mike seja sempre influenciado pelas narrativas do Rei do Terror, Stephen King. É no autor e em sua obra Salem’s Lot que a série se inspira, principalmente com a escolha de sua temática sobrenatural – ou seria celestial?
O roteiro progride satisfatoriamente em suspense, revelações, bizarrices e também no sobrenatural, conforme avançam os episódios. A narrativa é inteligente, curiosa e alimenta o espectador com pistas da criatura responsável pelos eventos que assombram a ilha. Ainda que atue inicialmente com a sugestividade, quando a trama finalmente revela seu outro lado, contrapondo-se a dramas dos personagens e críticas sociais, o resultado é de matar.
Com tais revelações, a série adquire outro nível de tensão. Agora, além de lidar com seus traumas e problemas, os moradores da ilha são obrigados a enfrentar o Mal em carne e osso (e sangue). Produzida em um ano bastante próximo da comemoração dos dois séculos da primeira história de vampiros, ela reinventa o gênero com maestria, ainda que não seja, em sua essência, sobre vampiros.
Vampiro, na verdade, é uma palavra que sequer é mencionada durante a série, mesmo que os hábitos e características da criatura – e de suas vítimas – explicitem sua identidade. O anjo é cruel, está faminto, e tem esperteza o suficiente para infiltrar-se em uma população previamente corrompida, vulnerável a tornar-se sua presa. Ele, de fato, é uma manifestação do mal, mas os maiores monstros de Midnight Mass são, sem sombra de dúvidas, humanos.
“Missa da Meia-Noite é, em sua essência, a história da morte de uma comunidade. E é tudo contado sobre um pano de fundo do que parece, na superfície, como uma história tradicional de vampiros. Mas, no fim, é sobre o que ocorre quando boas pessoas, afastadas do restante do mundo, precisam lidar com suas crenças sendo corrompidas. São as decisões humanas que definem o destino de Crockett”.
“Como uma criança que estava mergulhando na literatura clássica de Terror, os paralelos entre beber o sangue de Cristo – na comunhão – e o que eu estava lendo em Drácula, de Bram Stoker, foram inevitáveis”, diz Mike Flanagan, para a Netflix. Chamada por padre Paul de anjo (e nunca realmente vimos um anjo para contrariá-lo), a estética da criatura é monstruosa e demoníaca, mesmo que ela apresente alguns traços físicos humanos. Criado a partir de uma mistura de próteses corporais, maquiagem e efeitos especiais, o resultado é assustador e convincente.
Mergulhando em recursos técnicos que, assim como os efeitos visuais, também fornecem um caráter belo e detalhista ao projeto, é impossível não destacar a excelente fotografia de Michael Fimognari. Ele se utiliza de câmeras que insistem demoradamente em quadros fechados, próximos aos rostos dos personagens em situações expressivas. Ou uma perspectiva inquieta de cima, em planos mais abertos e subjetivos, indicando o movimento e a observação do anjo.
A rotineira parceria entre Flanagan e Michael é sempre enriquecedora, com técnicas de filmagem instigantes que auxiliam na construção do suspense. Técnicas essas, como a utilização de longos planos-sequência, que contribuem para a imersão e realismo. Os tons apagados e frios na fotografia perduram na maior parte do tempo, quando são apresentados cenários da ilha. As exceções se dão, principalmente, quando o Terror físico ganha espaço e existe fogo nas cenas.
Concretizando uma ideia que já estava em sua cabeça há anos, Flanagan teve o tempo necessário para entregar um trabalho meticuloso, caprichado e recheado de referências. Simbologias e detalhes que tornam sua invenção ainda mais especial. Como nas características vampíricas do anjo, ao não adentrar moradias, a menos que seja convidado por um membro da comunidade a fazê-lo, por exemplo. Ou com a atenção aos nomes bíblicos dos episódios e suas relações com seus conteúdos.
Habilidoso em quebrar expectativas do público adicionando drama ao espanto e temor, do quinto episódio em diante, o pânico instaurado na história contribui para arquitetar seu perspicaz desfecho. A progressão do horror e da problemática criam uma expectativa engenhosamente atingida. Os distintos arcos da trama se unem e os mistérios que pedem por soluções recebem suas devidas respostas, até que toda a tensão carregada ao longo da série se manifeste em chamas.
Sangue, violência, desespero e puro caos irrompem na conclusão dessa história que é assertiva ao combinar o sobrenatural clássico com a tragédia a qual a Ilha Crockett e seus habitantes estão fadados. Fadados não apenas pelo dramático encontro com a morte encarnada em pele de anjo do mal, mas sim diante de falhas humanas e monstros reais. Flanagan triunfa em transmitir suas mensagens carregadas de críticas, e ainda assim, repletas de delicadeza. E faz de Missa da Meia-Noite uma de suas obras-primas, um culto a uma narrativa sensível, contada sob a perspectiva do horror clássico.