Bruno Andrade
“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”, escreve Chico Buarque na canção Roda Viva. Das diversas interpretações possíveis, a mais cruel e — infelizmente — presente diz respeito à vivência na Ditadura Militar brasileira, em especial durante o endurecimento do regime com o AI-5, período também conhecido como os “Anos de Chumbo”. Dentre as histórias manchadas pela repressão política, encontramos José Sebastião Rios de Moura, personagem fundamental em Meu Tio José, animação dirigida, roteirizada e ilustrada por Ducca Rios, e que integra a 45ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
O longa de 89 minutos é baseado em uma história real, cujo desfecho trágico acabou impactando a vida de Ducca Rios. Na infância, durante a Ditadura Militar, seu tio José Moura — membro do movimento Dissidência da Guanabara, inicialmente chamado de MR-8 — foi morto pelo regime, vítima de uma emboscada. Esse contexto é retratado nas cenas iniciais de Meu Tio José, nas quais vemos de forma intercalada o jovem Adonias, espécie de alter ego do diretor, sonhando com um jogo da seleção de 1983, enquanto José (que recebe a voz de Wagner Moura) sofre o atentado dentro de uma farmácia.
O filme aposta na visão inocente de Adonias diante de todo o horror que o cerca, caminhando por ruas repletas de pichações e notícias políticas, e marca a estreia de Ducca Rios em longa-metragens, embora este não seja o primeiro trabalho do diretor, que já acumula colaborações em séries da Disney Jr. e do canal ZooMoo. Na trama, enquanto o tio é internado e passa por cirurgias delicadas na tentativa de remoção das balas, o jovem garoto preocupa-se com uma redação da escola que precisa ser entregue. Ao mesmo tempo que a família luta para digerir a situação, tentando esconder a tristeza inerente à situação, também se vê presa ao resguardo da inocência infantil do menino.
Porém, não demora para o jovem começar a tomar consciência daquilo que está em torno, tentando justificar suas inquietações e ebulições de sentimentos com o argumento de que seus pais são professores — em alguns momentos, ele imagina os valentões da escola com coturnos e farda, sendo chamado de “subversivo” e “filho de comunista”, além de sonhar com momentos de tortura. Todavia, Meu Tio José não se deixa enganar: é uma obra política voltada para o público jovem, e isso não tenta ser suprimido.
A técnica cut-out — ou simplesmente “animação de recortes” — empregada no filme oferece algumas limitações, mas essas são superadas através do roteiro e da direção de Rios, que desde o início aponta para um romance de formação, priorizando a poesia em comparação a forma, mesmo que esta também esteja bem realizada no longa. Essa maneira de fazer animação é antiga, sendo a mesma utilizada em South Park e na animação Persépolis, filme de 2007 baseado no romance gráfico de Marjane Satrapi. A composição em preto e branco pode ser interpretada como uma forma de ilustrar o ar pesado da época, considerando que Meu Tio José ganha cores somente na cena final, momento que ilustra a reabertura política do país.
Talvez a parte mais cruel abordada na animação seja a esperança depositada por seus pais, dois militantes das Diretas Já, na possibilidade de uma reabertura política, tendo em vista que todos sabem os motivos que levaram ao atentado contra José, mas ficam de mãos atadas. A chegada do filme ganha diferentes proporções no momento atual, visto que uma parcela da população “aparenta não saber muito sobre a enorme crueldade que fez parte do regime que afligiu o Brasil durante tantos anos”, como disse Rios em uma entrevista, na qual continuou: “Se realmente soubessem, não estariam se manifestando a favor de AI-5 e de outras ideias esdrúxulas”.
No final da animação, Adonias só confirma aquilo que suspeitava ao longo de toda a trama. Através de sua interpretação do assassinato do tio, o menino decide escrever a redação que o preocupava inicialmente narrando a história do próprio parente — esse que foi um grande amigo de Torquato Neto, poeta responsável pelo documento que divulgou o Tropicalismo, a quem o cantor Caetano Veloso dedicou a canção Cajuína —, depois de acumular memórias confidenciadas por seus familiares sobre a trajetória política de José. Como nos versos de Chico, a história recente do país faz perceber que estamos próximos daqueles que partiram e morreram durante a Ditadura, propiciando atualidade e força ao filme de Ducca Rios. Através de uma construção singela e visceral, Meu Tio José ganha por seu próprio mérito.