Nathan Sampaio
Drácula, Frankenstein, Jason Voorhees, Pinhead, Chucky e tantos outros são personagens muito conhecidos do Cinema de Terror, e só de ler seus nomes já vem à mente diversas histórias que eles protagonizam. No Brasil, também temos uma figura tão importante e reconhecível quanto: o Zé do Caixão, o qual, infelizmente, está aos poucos caindo no esquecimento. Mas que deveria ser relembrado, pois seu primeiro filme, À Meia-Noite Levarei Sua Alma, é um clássico e o precursor do Horror brasileiro.
A história do longa-metragem de 1964 foca em Zé do Caixão (José Mojica Marins), um cruel coveiro, que almeja muito ter um filho para continuar sua linhagem. Porém, sua esposa, Lenita (Valéria Vasquez), é infertil, então ele vê em Terezinha (Magda Mei), noiva de seu amigo, uma candidata perfeita a mãe de seus filhos. Sendo assim, ele fará de tudo para possuí-la.
Primeiramente, é importante ressaltar o quão relevante esse filme é para a história do Cinema nacional. Ele foi o primeiro longa de Terror realizado no Brasil, e que serviu de inspiração para diretores, nacionais e internacionais, como Darren Aronofsky, Tim Burton e Rodrigo Aragão, além de inspirar outras obras de Terror brasileiras, por exemplo: As Boas Maneiras e Morto Não Fala.
O diretor, roteirista e protagonista, José Mojica Marins, sempre sonhou em trabalhar na direção, e após dois projetos mal sucedidos, ele viu no Terror a chance de fazer algo chamativo ao público. Então, vendeu sua casa com tudo que havia dentro, realizou empréstimos e, assim, fez surgir o longa nacional mais chocante da época.
Sádico, profano, assustador, cruel, egoísta, egocêntrico e violento são alguns dos adjetivos que podemos relacionar ao Zé do Caixão. Sendo uma figura tão perversa e com um visual muito característico, com sua capa, chapéu e unhas grandes, o vilão se destaca e cresce ainda mais com a atuação de Mojica, tornando-o um personagem icônico.
Elementos que diferenciam e destacam este filme de outras obras estrangeiras são a motivação do vilão e o protagonismo da história. Por mais distorcida que seja sua moralidade, Zé parece muito preocupado com a continuação do seu sangue. Em uma cena rápida ele reprime um homem que maltrata seu filho, isso mostra que o personagem, por mais malvado que seja, ainda possui algum princípio que norteia suas decisões. Além disso, tornar uma figura asquerosa o centro da trama era algo raro de ser visto no Cinema brasileiro até então.
Outro traço muito forte da personalidade de Zé é sua postura antirreligiosa. Há vários momentos na projeção que observamos o personagem zombar de símbolos, cultos e crenças da população da pequena cidade em que vive. Muitas vezes é possível ver o protagonista desdenhar de profecias ou dizeres sobrenaturais, por mais evidentes que elas sejam.
Na época em que o filme foi lançado, a sociedade brasileira era majoritariamente cristã, por isso, quando elas viram o protagonista desdenhar explicitamente de figuras sagradas foi um choque. Essa atitude do personagem torna-o muito diferente de outros vilões do Cinema que usam e abusam do sobrenatural, enquanto Zé é tão assustador que é real, e o pior, é que ele sabe disso e usa ao seu favor.
Toda a trama é construída para que entendamos as motivações do vilão e tudo o que ele está disposto a fazer para atingir os seus objetivos, funcionando como um excelente estudo de personagem. Uma das estratégias de À Meia-Noite Levarei Sua Alma é mostrar as interações de Zé do Caixão com os moradores da cidade, pois são nessas situações que temos a dimensão da maldade que existe dentro dele.
Há uma belíssima cena que se passa em um bar e demonstra a vilania do personagem de Mojica. Nela, vemos Zé sendo contrariado e confrontado por dois homens diferentes e ambos têm o mesmo destino, eles são agredidos com muita crueldade e frieza, o vilão parece se deleitar com a dor e sofrimento alheio, demonstrando, assim, a sua periculosidade aos espectadores e o porquê ele é tão temido no povoado local.
Durante a projeção, pode-se observar diversas situações em que nos deparamos com os terríveis atos do protagonista, e somos forçados a assistir aquilo, tornando a jornada bastante desconfortável e repugnante, ou seja, é perfeito para um filme de Terror. Com o passar da história, temos a sensação de fazer parte daquela pequena cidade, uma vez que também observamos as horrendas atitudes de Zé e nada podemos fazer para impedir.
Um elemento técnico que auxilia nessa construção de tensão são os closes e planos longos nas cenas mais tensas. Mojica utiliza desses recursos para nos aproximar do ataque do vilão, colocando-nos, muitas vezes, no papel de vítima, e quando essas cenas duram vários minutos, cria-se uma angústia, pois somos obrigados a ver aqueles atos horrendos por muito tempo. Os horrores do enredo de Mojica não se resumem apenas às cenas com Zé do Caixão. O longa inteligentemente cria uma aura de maldição e pesadelo em torno de si e da história, utilizando-se de crendices populares para aumentar o temor.
Na cena de abertura, há uma bruxa que diz o quão terrível é a história que vem a seguir e cria um receio de que os espectadores serão assombrados por tudo que verão. Durante o desenrolar da trama, há outros momentos de premonição com elementos clássicos de crenças populares, como, por exemplo, o gato preto e o canto da coruja. Esses componentes dispostos durante o longa-metragem tornam nossa experiência mais pessoal, pois são contos que fazem parte do dia a dia do brasileiro.
É interessante observar como o protagonista reage ao mundo sobrenatural, pois, mesmo estando diante de diversas evidências, Zé ainda nega a existência desses acontecimentos. Isso demonstra a sua forte personalidade e o quanto ele se acha superior, uma vez que o personagem se recusa a aceitar que errou, tais atitudes evidenciam a excelente construção da psique do personagem.
Como ficou óbvio ao decorrer do texto, quando se comenta À Meia-Noite Levarei Sua Alma deve-se falar de Zé do Caixão. É incontestável o poder do personagem criado por Mojica, e, por mais asqueroso que ele seja, é inegável o seu carisma e sua presença em cena. Pode-se dizer que Zé é o típico vilão que amamos odiar.
Há temáticas abordadas no roteiro que são bem inovadoras para a época. O exemplo mais claro é o do abuso sexual e da violência doméstica, os quais eram temas pouco discutidos na sociedade brasileira dos anos 60, porém, o longa não se restringue ao abordar o assunto, afinal ele mostra claramente uma cena de abuso e todo o horror que é viver aquilo, colocando-nos no ponto de vista da vítima.
A intenção do diretor ao abordar esses temas não é o simples choque, mas mostrar que tal ato é um terror da vida real e que, infelizmente, é presente na vida dos brasileiros. O roteiro ainda condena essas atitudes, uma vez que Zé do Caixão sofre graves consequências por causa do que fez com Terezinha, transmitindo certeiramente uma mensagem contra esse tipo de agressão.
Por causa de seu baixo orçamento, Mojica precisou se reinventar e procurar métodos de maquiagem e efeitos que fossem fáceis e baratos de serem feitos. Dito isso, os efeitos especiais são surpreendentemente bons para a época, e, embora possa se notar que são falsos em alguns momentos, eles não perdem o impacto.
Há efeitos muito bem executados de sangue e mutilações, e o longa fica bem mais ousado para o ato final, mostrando zumbis e até mesmo fantasmas. Utilizando-se de técnicas de filmagem e de objetos caseiros, como massa de pão ou bicho de goiaba, o filme consegue criar figuras e cenas inquietantes, até os dias de hoje.
À Meia-Noite Levarei Sua Alma é um clássico absoluto do Cinema nacional, responsável por criar e popularizar Zé do Caixão como um dos maiores ícones do Terror. Tendo temáticas inovadoras para a época e sendo completamente subversivo ao mostrar um personagem explicitamente cruel e sádico, além de contar com várias crendices populares, o longa se torna icônico por sua qualidade e pela inovação que ele trouxe aos filmes da época. Essa é uma produção que merece ser vista por todos, para que a figura do Zé continue a assustar as próximas gerações.