Gabriel Gomes Santana
Em um Brasil distópico, mas não muito distante da presente realidade, resgatar as origens deixa de ser uma opção e passa a ser uma lei. É diante desse bizarro cenário que Medida Provisória, primeiro longa dirigido por Lázaro Ramos, se desenvolve e quebra recordes de bilheteria nacional. O filme trata de uma tragicomédia, que aborda o que há de pior em nosso jeitinho brasileiro de mascarar problemas profundos dos porões racistas e cordiais, nos quais Gilberto Freyre de maneira dualista e polêmica tanto criticou em Casa Grande e Senzala.
Se procurarmos no dicionário jurídico, uma Medida Provisória (MP) nada mais é do que uma ação emergencial que tem uma força representativa de lei, sem necessariamente a aprovação do Poder Legislativo. Ela só entrará como lei oficial da nação a partir de uma posterior votação na Câmara; e é justamente através desse artifício de poder, sem a consulta daqueles que serão impactados, que a narrativa apresenta, na ficção, a decisão do governo brasileiro em deportar todas as pessoas consideradas negras, ou como o próprio filme cita, “pessoas de melanina acentuada”, para o continente africano.
A ideia de trazer essa história para as telonas surgiu do próprio Lázaro Ramos, mas o diretor admite que o roteiro foi inspirado, em grande parte, numa adaptação da peça teatral Namíbia Não!, obra escrita por Aldri Anunciação (que também é roteirista do filme) e dirigida por Lázaro. Na peça, André é um advogado que entra com um processo contra o Estado Brasileiro pelo tempo de escravidão e ganha uma indenização bizarra: passagem só de ida para Namíbia. Apesar de sofrer algumas alterações, sobretudo no que diz respeito ao elenco, a película representou fielmente a essência bizarra e espetacular da peça.
Composto por um núcleo de estrelas nacionais e internacionais, Medida Provisória conta com 77 atores e atrizes negros, se destacando assim como a produção cinematográfica com maior representatividade negra da história do Cinema nacional. Além disso, a equipe técnica dos bastidores também é predominantemente preta. No time principal, nomes como Alfred Enoch (Antonio), Taís Araújo (Capitú), Seu Jorge (André), Aldri Anunciação (Ivan), Adriana Esteves (Isabel) e Renata Sorrah (Dona Izildinha) protagonizam o longa-metragem. Há também diversas participações especiais, como é o caso de figuras como Emicida, Tia Má e Luis Miranda.
Basicamente, podemos dividir o enredo em três partes: cômica, trágica e dramática, em uma narrativa que prende a atenção do espectador do início ao fim. Seja pelos absurdos, como também pelo apego sentimental aos personagens, Medida Provisória acaba nos colocando como torcida da resistência de Antônio e André. No filme, ambos são irmãos inseparáveis que protestam contra todas as terríveis ações estatais racistas, mas apesar de serem indivíduos combativos, suas personalidades diferem bastante, o que traz maior sinergia para as cenas.
Caso a abordagem crítica de Lázaro apontasse apenas uma perspectiva de narrativa dramática, o filme por si só já seria digno de boas avaliações. No entanto, impressiona positivamente a maneira como a narrativa consegue alarmar assuntos sérios e importantes, de um jeito leve e descontraído. Essa mescla é feita à perfeição, já que instiga a refletir a respeito de uma autocrítica coletiva, sem desrespeitar causas tão relevantes, quanto a questão do racismo estrutural.
A terrível semelhança entre ficção e realidade
É bem perceptível que Medida Provisória explora temáticas sensíveis de nossa cruel e preconceituosa contemporaneidade. É válido destacar, porém, que o filme não denuncia exclusivamente as mazelas do racismo estrutural, já que o roteiro também aponta características ligadas aos demais estigmas e comportamentos preocupantes. A exemplo disso podem ser citados os obstáculos enfrentados pela personagem Capitu (Taís Araújo).
Por ser uma mulher negra, médica de um hospital particular, a mesma tem de lidar com diversos preconceitos que, assim como a questão racial, também estão enraizados em nossa sociedade. Outro ponto se dá pelas semelhanças envolvendo as duas antagonistas brancas da narrativa: Isabel (Adriana Esteves) e Dona Izildinha (Renata Sorrah). Enquanto Isabel inferniza a vida daqueles que são considerados de “melanina acentuada”, Izildinha busca a todo momento se sentir útil e notável para as pessoas (da maneira errada, é claro).
Tanto Isabel quanto Izildinha representam o perfil de indivíduos que têm o prazer em constranger outrem. São pessoas ressentidas e preocupadas com o mal estar alheio que, ao depositarem todo o seu ódio em terceiros, tentam mascarar os assuntos pessoais mal resolvidos. Isabel possui uma conta fake na internet, onde expõe amarguradamente comentários racistas. Ao mesmo tempo, a personagem se vê refém de si mesma quando passa a ser desprezada e ignorada por seu chefe e por seu assessor. Já Izildinha não vê sua família há anos, algo que diz bastante sobre o seu comportamento repugnante.
Por mais esdrúxula que seja a Medida Provisória que intitula o filme, ela infelizmente não está tão longe de nossa realidade. Com um Estado que ameaça e boicota o campo da Cultura, que incentiva a prática violenta das polícias, reprime movimentos sociais e legitima ataques de ódio e mentira, sobretudo pelas redes sociais, certamente um futuro semelhante ao da ficção se torna um risco cada vez mais iminente.
Contudo, felizmente ainda prevalece uma esperança em meio ao caos. Antes mesmo de sua estreia, Medida Provisória foi indicada a diversos prêmios internacionais. Saiu vencedor do Festival de Cinema Itinerante da Língua Portuguesa (FESTin) nas categorias de Melhor Realizador e Melhor Ator; foi o Melhor Roteiro Indie do Memphis Film Festival; e ainda campeão do Prêmio Manuel Barba, do Festival de Cinema Ibero-americano de Huelva. Diante dessa maravilhosa repercussão, é possível enxergar com bons olhos o impacto de milhares de pessoas que prestigiam o Cinema nacional.
Para entender melhor sobre as propostas críticas dessa obra, nada melhor do que interpretar as falas de Lázaro Ramos a respeito do contexto com o qual ela se insere: “Estamos falando de um filme que foi baseado em uma peça de teatro escrita em 2011. O roteiro foi escrito em 2015 com o propósito de alertar sobre problemas e questões que a gente não gostaria que acontecesse. Depois disso, várias delas aconteceram. É um sinal de que não podemos calar debates importantes para a gente melhorar enquanto sociedade e comunidade”.
Medida Provisória é um grito de alerta, mas também de esperança em meio ao caos. Não podemos desconsiderar que se trata de uma dramatização surgida num momento de rivalidades, disputas eleitorais e todo chorume desse desgoverno que flerta com situações antes consideradas impensáveis (no pior sentido da palavra). Nada é mais mirabolante que uma bela dramatização que escracha nossa condição. Os problemas são apresentados de maneira confortavelmente incômoda. É rir de si mesmo, sabendo os defeitos que precisam ser superados, sobretudo em momentos de transição. É daí que vem a esperança.