Ana Júlia Trevisan
Partir para outro trabalho após uma grandiosa, desafiadora e bem sucedida turnê pode ser uma tarefa dificílima, e Maria Rita sabe muito bem disso. O fim do Samba Meu assombrava as noites de sono da cantora mesmo antes do show de encerramento acontecer. A saída para o problema seriam seis meses de merecidas férias, mas, retomando, estamos falando de MR, rata de palco, e por mais doloroso que o desligamento com o projeto anterior fosse, até os menos céticos desconfiavam que ela aguentaria esse período sem produção.
Um show sem nome. Uma mini-turnê para a Europa. Quatro shows em São Paulo (que foram se multiplicando semana após semana). A necessidade de se desarmar das expectativas da crítica, do público e de si mesma. É assim que nasce Elo. O último álbum de Maria Rita pela gravadora Warner é complexo em sua simplicidade, e é dessa dualidade, guiada pelo piano do Tiago Costa, baixo do Sylvinho Mazzuca e bateria do Cuca Teixeira, que parte sua beleza.
Aqui, a intenção de Maria Rita é única e exclusivamente o canto. A artista abriu a caixinha de desejos dos amantes de sua Arte e deu voz a clássicos e inéditas que seu público e sua alma pediam. É na despretensão de amarrar as músicas que o faixa a faixa floresce. O tato de Maria Rita é natural de quem vive a Música desde o útero da mãe, e Elo, além de presentear os fãs, comprova a máxima da filha de Elis Regina, trazendo uma narrativa em suas entrelinhas.
Vem desabençoar essa tristeza intrusa
Muito antes de se firmarem em Amor e Música, as crenças de Maria timidamente marcavam presença pela discografia da cantora. Conceição Dos Coqueiros e Santana, além de abrirem o disco, foram as duas primeiras músicas a entrarem no repertório, ressaltando a potência vocal de Maria Rita e conectando a cantora com o sagrado.
Diferente da calorosa versão Santana cantada por Gal Costa, Maria Rita respeitosamente se curva ao hierático. A bateria de Cuca ganha espaço na canção, que combinada com a fluente dicção da cantora, cadencia e fortalece a letra. Já Conceição Dos Coqueiros, que teve direito a uma emoção indescritível, nó na garganta e tudo mais que acompanha quando ouvida pela primeira vez por Maria, foi transpassada com seu instrumental crescente, que valoriza cada verso Lula Queiroga, Alexandre Bicudo e Lulu Oliveira.
Calor que provoca arrepio
O credo de Maria desemboca nas águas do mar. Aqui, a cantora cria uma sequência no disco, que contempla Coração a Batucar, Menino do Rio e Pra Matar Meu Coração. Nessa altura do álbum, Maria Rita permite que o calor de um ambiente turístico praiano dominem as sensações. Coração a Batucar, quarta faixa do disco, dá o primeiro espaço ao Samba dentro do Elo. Já as outras, por serem mais ardentes, dão um novo compasso à setlist. Em Menino do Rio, Maria Rita soa mais concentrada nos graves, e em Pra Matar Meu Coração, a cantora fecha a trinca, aproveitando a temática desamorosa e preparando o terreno para as músicas que estão por vir.
A lista de compositores das respectivas canções vai de Davi Moraes, Álvaro Lancellotti a Pedro Baby e Caetano Veloso. A sequência praiana do disco emaranha a assinatura da cantora com grandes inspirações de sua juventude, como a dupla dinâmica Baby do Brasil e Pepeu Gomes. Maria faz o trabalho completo, provocando encantamento com novas músicas e trazendo de volta a paixão por canções da década de 80. Em Elo, o vento sopra forte na superfície do mar, formando as poderosas ondas que carregam a cantora até hoje.
Disse que meu corpo era só dele aquela noite
Esse capítulo da narrativa começa com a volúpia da A História de Lily Braun. O eu-lírico feminino de Chico Buarque, que já é algo inexplicável por si só, consegue ir além na canção, construindo uma crônica de começo, meio e fim, movida à libertinagem e sem interesse de ser sutil. Maria Rita toma os versos pra si, esbanjando em sua voz toda a sensualidade da letra. Se permitindo ter as mais variadas experiências e sentimentos, também é nessa canção que Maria deixa a paixão pelo O Grande Circo Místico vir à tona.
Mesmo depois do fim de um relacionamento ainda podem restar dúvidas. Aquele ‘será?’ fica no ar, e Só de Você vem para instigar o questionamento e complementar a beleza de Lily Braun. Composição de Rita Lee e com arranjo original de César Camargo Mariano, pai de Maria Rita, a faixa prepara com leveza o fechamento do álbum. Os arranjos de Tiago Costa aproximam Elo da primorosa sonoridade dos dois primeiros álbuns da artista, enredando toda a unânime carreira da cantora.
Você me esquece eu me afundo
Uma das grandes características de Elo é transitar entre o amor e o desamor. As singularidades das melodias são o grande referencial de sentimentos que passam a sensação de movimento em suas faixas. É a própria densidade das canções que norteia os ouvintes pelo enredo que está sendo contado. O contrabaixo de Mazzucca merece os créditos nessa experiência sensorial, ao mesmo modo que o Acordeon de Tiago Costa dá um tom mais particular ao drama.
Ao sair de uma sequência entre A Outra e Só de Você para encarar o sambão Coração em Desalinho, Maria afirma que não pretende ficar dentro de uma caixinha musical. Pra que seguir um só gênero se ela é maior que isso? Da MPB apresentada em seus dois primeiros discos ao Samba que chegou timidamente em Samba Meu, a cantora prova que canta apenas aquilo que domina, e domina tudo que se propõe a fazer. Seria uma heresia uma artista da magnitude de Maria Rita ficar presa apenas nos padrões da MPB, mas completa no Samba, Maria não esquece que suas fibras são de Música Popular. Elo tem espaço para a artista se testar, remanejar e se encontrar como matéria viva, se alimentando de Música.
E tudo nascerá mais belo. O verde faz do azul com amarelo o elo com todas as cores
Além do verso que batiza o álbum, essa canção traz a promessa de que não te esquecerei Nem um dia. A composição de Djavan ressalta a relação de respeito por aqueles que escrevem as letras que a cantora brilhantemente dá a voz. De inéditas a grandes clássicos interpretados pelos gigantes da MPB, no Elo tudo é liberado. Sejam as músicas que foram cantadas apenas em 2011 ou as que foram carregadas em outros discos e ao voz:piano, todas ganharam um espaço especial na discografia de Maria Rita. Reforçando antigas colaborações ou iniciando frutíferas parcerias, das novas faixas às antigas sonoridades, Elo compacta a carreira da artista, abrindo as portas para que sua Arte pudesse se rejuvenescer.
O quarto álbum da cantora não é o disco da carreira, e seria injusto colocar tal peso sobre um trabalho tão natural. Elo foi concebido como uma prova de confiança, que um ano mais tarde se potencializou no Redescobrir. Mais leve e sem amarras, Maria Rita flutua pelos versos rebatizados do disco. A atmosfera aconchegante conta uma história, mesmo que indiretamente, pois a vida é isso: intensidade, desalinho e acerto. É fácil se conectar com o Elo ao mesmo passo que é tangível se conectar com toda a obra de Maria Rita.
Um disco fácil dentro de sua proposta, e um álbum que encerra um ciclo dentro da discografia da cantora. Elo traz a capacidade e personalidade da cantora que cala os urubus da mídia que fizeram a crítica mais cruel: ser parecida com a própria mãe. Maria prova que sua genética é detalhe, que sua carreira diz sobre quem ela é de verdade e não sobre quem terceiros plantam de sua imagem.
Se ainda havia ficado dúvidas a alguém, o quarto disco da cantora mostra a sapiência e dominando de cada nota. Ela laceia tudo que tinha produzido até então sob o selo MR. Nada sai do lugar, Maria domina cada compasso, como uma boa virginiana. Elo não é o álbum de maior peso em sua discografia, mas nem por isso ele se torna menor. Ele é o empurrão que faltava para que a cantora completa pudesse transbordar sua Arte e, um ano mais tarde, homenagear sua mãe.
O Elo que Maria Rita selou com seus fãs nunca se perdeu. Sincera, Maria se desinibe em cima dos palcos, local sagrado a que pertence. Do trio elétrico em São Luís do Maranhão ao Auditório do Araújo Vianna, com espaço de sobra pra muita farra na Fundição Progresso, Circo Voador, Tom Brasil e Casa Natura Musical, Maria canta toda sua verdade ao se emocionar com Mainha Me Ensinou, erguer a mão em punho em O Bêbado e a Equilibrista e se recusar a encerrar Cara Valente sem antes o nananinanão que se tornou uma conversa íntima com a plateia, em específico seus bacanudos. Toda essa amizade que marcam esses 10 anos de Elo é reflexo de uma turnê que começou sem nome em maio de 2010.