Layla de Oliveira
Ah, a Revolução Francesa. Marcada em nossas memórias do Ensino Médio como o momento de estrelato da guilhotina, mas ela é claramente muito mais do que isso. A grande desigualdade social e econômica resultou em um nível de pobreza nunca antes visto no país, enquanto os aristocratas esbanjavam em festas e novos palacetes. Resultando na Queda da Bastilha, um símbolo da opressão francesa, a Revolução determinou o fim da monarquia absolutista na França, e influenciou muitos outros países a seguirem o exemplo, além de dar início à Idade Contemporânea na história ocidental.
Mas Sofia Coppola não poderia ligar menos para tudo isso. O filme Maria Antonieta, que completa 15 anos desde sua estreia (conturbada) no Festival de Cannes neste 24 de maio, não conta a história de Maria Antonieta (Kirsten Dunst), a rainha absolutista e Madame Déficit como muitos outros filmes, séries, livros e documentários fazem; ela simplesmente nos faz acompanhar a vida de Maria Antonieta, uma jovem de 14 anos que foi obrigada a adaptar-se em um novo ambiente, com muitas expectativas e deveres a rondando sempre. E muitas cores pastéis, também.
Baseando-se na biografia Marie Antoinette: The Journey de Antonia Fraser, o enredo é claro: desde seu casamento, arranjado para melhorar as relações entre Áustria e França, com o então delfim francês Luís XVI (Jason Schwartzman); sua chegada ao Palácio de Versalhes e o deslumbramento com todas as riquezas e pessoas que a cercavam; a antipatia do povo e da própria nobreza para com ela; festas, vestidos e joias; até culminar em sua fuga do palácio, nos auges da Revolução. O que mais importa aqui é como tudo isso é contado e mostrado a nós, humanizando a última rainha da França.
Coppola é uma mestra em manifestar delicadeza e sensibilidade. Seus filmes são compostos, em maioria, por protagonistas femininas em momentos de fragilidade e de mudança (e até os dois juntos), e Maria Antonieta é o melhor exemplo disso. Desde que chegou a Versalhes, Maria Antonieta foi tratada com desdém por conta de sua nacionalidade, sendo até chamada de L’Autre-chienne, um trocadilho entre as palavras autrichienne, que significa “mulher austríaca” e autre-chienne, “outra cadela”.
Além de se sentir deslocada no palácio, a mãe de Maria Antonieta a pressionava para engravidar, o que consolidaria de vez a aproximação austríaco-francesa. A expectativa em cima da ainda adolescente rainha da França rendia diversas crises de choro, melancolia, e como estamos falando desta personagem, compras. O conceito de “vazio do excesso” mostra que bens materiais apenas trazem uma felicidade momentânea e a falsa impressão de realização de desejos, enquanto incita o consumidor a comprar cada vez mais, e podemos dizer com toda a certeza que Maria Antonieta não tem escrúpulo nenhum ao gastar.
Quando Maria Antonieta finalmente engravida e tempo depois, dá à luz à primeira filha do casal, há uma mudança comportamental e visual na monarca. Ela troca os grandiosos vestidos coloridos e pomposos por simples vestidos brancos feitos de algodão e uma vida idílica em seu Petit Trianon, um palácio particular (é, ela não ficou tão humilde assim). Porém, isso não diminuiu a antipatia do povo e da corte por ela, que inclusive crescia cada vez mais; essa tensão foi mostrada em diversos momentos, desde pequenas cenas em um teatro, onde ela começa a aplaudir ao final da apresentação e ninguém a acompanha (diferentemente da primeira vez, onde todos juntaram-se a ovação) até a invasão em Versalhes, quando os revoltosos a procuravam para matá-la e toda a família Bourbon. E o final, bom, todos nós sabemos.
Só que a trajetória de Maria Antonieta e seu final trágico não foram bem recebidos na estreia do filme em Cannes, em 2006. Bom, ao menos pela visão de Sofia Coppola. Apesar da indicação à Palma de Ouro no festival, os poucos aplausos dos críticos logo foram sobrepujados por vaias e assobios de desaprovação, além de resenhas ambíguas feitas por jornalistas, que resumiam o filme em algo “bonitinho, mas vazio”. Coppola disse que as críticas negativas provavelmente vieram, em maioria, dos franceses, já que o enredo não segue exatamente o panorama histórico.
No entanto, esse anacronismo torna-se um dos maiores charmes do filme. Desde o figurino, que foi representado de uma maneira bem mais leve e colorida, sem perder silhuetas marcantes dos vestidos do século 18 apesar do uso de alguns tecidos impensáveis para a época; até a música utilizada na trilha sonora que, ao invés da música clássica sempre usada nos filmes de época, faz uma mistura e representa a juventude de Maria Antonieta por meio de sons derivados do punk, como o new wave e o pós-punk. Como exemplo, temos a icônica cena de compras ao som de I Want Candy, da banda Bow Wow Wow, e a aparição infame do All-Star lilás.
Essas decisões foram tomadas para aproximar a rainha do público, especialmente dos jovens, já que ela mesma era uma quando se casou. K.K. Barrett, diretor de arte do filme, explica que decidiram “superenfatizar o fato que ela tinha 14 anos quando chegou lá pela primeira vez, e fazer com que parecesse um novo mundo, e não um velho e deselegante”. Enquanto isso, a figurinista Milena Canonero recebia uma caixa de macarons de Coppola para a paleta de cores dos 66 figurinos que Kirsten Dunst utilizou no filme, o que a fez conquistar um Oscar de Melhor Figurino. Isso sem contar os pares de sapato Manolo Blahnik.
Os filmes de Sofia Coppola sempre relatam pessoas privilegiadas que se perdem no seu mundo ideal, e acabam se desconectando da realidade. No caso de Maria Antonieta com a França pré-revolucionária, a população sentia o grande abismo da desigualdade, enquanto ela se deliciava com doces, passeios e festejos. E nós também.
A falta de visão e perspectiva em relação aos franceses que sofriam com a crise econômica do país parece ser extremamente calculada. Tirando momentos pontuais, ela simplesmente é esquecida, porque ficamos tão fascinados com as intrigas e fantasias dentro do palácio que ficamos imersos naquele mundo.
Transformando eventos históricos em eventos relatáveis e atraentes para o público, Sofia Coppola conseguiu realizar o quase impossível: fazer com que, mesmo depois de 15 anos da primeira exibição de Maria Antonieta, sintamos comoção por meio de rosas pastéis e músicas dos anos 80 de uma jovem rainha rica, sem noção do sofrimento que a rondava, pois ela estava imersa demais no seu próprio.